quarta-feira, 30 de abril de 2008

Meninas

Em um pequeno vilarejo na Índia, há quase dois meses nasceu Lali, uma menina com duplicação facial. Ela tem dois pares de olhos, dois narizes e duas bocas. Para os vizinhos, a filha de um lavrador seria a reencarnação de uma deusa hindu. Eles fazem oferendas e querem construir um templo. O pai está cansado. Para ele, Lali é como qualquer outra criança.

No interior de São Paulo, dias depois da chegada de Lali ao mundo, uma portadora da síndrome de Down deu à luz a Valentina, uma menina saudável cujo pai é um rapaz com atraso mental. Algo raro. Poucas mulheres com Down se casam. Funcionários do cartório local se recusaram a registrar a filiação completa da criança porque o rapaz seria incapaz de declarar a paternidade por conta própria.

Há seis anos nascia Isabella. Ela morreu uma semana após o início da vida de Valentina. As características criminosas do óbito têm ocupado fartos espaços na imprensa. Os principais suspeitos são o pai e a madrasta da menina. Ela teria sido agredida por eles e atirada do apartamento localizado no sexto andar de um prédio em São Paulo.

Faz 24 anos que Vanessa veio à luz no Ceará. Surda de nascença, ela desenvolveu a fala e aprendeu a linguagem de sinais com apoio especializado e maternal. Há alguns dias ficou em segundo lugar no concurso de Miss Brasil. Situação inédita. Quando respondeu a perguntas dos jurados, Vanessa com o auxílio de uma intérprete emocionou o país com sua simpatia e expressividade.

Maria Gabriela nasceu com síndrome de Down há 27 anos. Em janeiro passado, descobriu que estava grávida de seis meses. Sua família e a do pai da criança comemoraram a chegada do bebê antes mesmo de saberem que ele seria saudável. A criança gerada é a menina Valentina, também filha de um rapaz com atraso mental, cuja paternidade um cartório do interior paulista não quis registrar.

Como dizia o poeta romano Terêncio, no século II a.C., "nada do que é humano me é estranho". Meninas como a deusa Lali, a saudável Valentina, o anjo Isabella, a musa Vanessa e a mamãe Maria Gabriela sempre serão razões de curiosidade. Logo, são do interesse da mídia e do público. Mas não se pode esquecer que elas, como quaisquer outras entre bilhões, só desejam ser felizes. Nem todas conseguem. No caso de Isabella Nardoni, não haverá mais essa chance.

* Publicado no Diário de Canoas, 30 de abril, na Gazeta do Sul, 1º de maio, no Diário Popular de Pelotas, 05 de maio, e em A Razão, 12 de maio de 2008.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A dona dos jogos

Qualificar o esporte como entorpecente da vontade popular é algo antiquado. Na origem, o circus até fazia parte das estratégias dos governos para desviar a atenção do povo. Hoje o entretenimento esportivo é muito mais uma indústria do qualquer outra coisa. Aliás, como quase tudo.

Por causa da situação do Tibete e sua relação com a China - onde será realizado o maior evento esportivo do ano - há quem acredite em boicote aos Jogos Olímpicos por meio da não-participação de países ou de uma mobilização contra a cobertura realizada pelos meios de comunicação. São idéias mofadas que alguns ainda insistem em ventilar.

No conflito entre o governo chinês e os tibetanos, não se duvida que a razão esteja ao lado do Dalai Lama e de seus astros-propaganda, Sharon Stone, Richard Gere e grande elenco. Neste artigo não se debate isso. Mas lembre-se, esse problema não é recente, e a escolha da capital chinesa como sede da competição também não.

Considerando que é inadmissível a vinculação do sucesso esportivo a ideologias (sejam quais forem) como forma de propagá-las, o contrário deve ser igualmente inaceitável. Ou seja, não se pode tolerar a utilização de posicionamentos políticos para promover o fracasso do esporte, por mais relevante que seja a causa.

Não prestigiar os Jogos de Beijing (ou Pequim, como queiram) significa praticar uma agressão contra um processo econômico que rende bilhões de dólares, euros e, inclusive, reais, gerando empregos e oportunidades em todo o globo. Representa optar pela ignorância em relação a bons exemplos que encantam crianças e estimulam atitudes saudáveis em todas as gerações. É colocar-se em oposição à possibilidade de harmonia entre os povos que o esporte proporciona.

Se a República Popular da China ofende os direitos humanos no Tibete, boicotem os produtos e a cultura dela. Não comprem as roupas, os aparelhos eletrônicos e as bugigangas de 1,99 que ela exporta. Quem sabe evitem até a pólvora, por ter sido descoberta lá. Não leiam A Arte da Guerra, nem citem Confúcio. Reneguem até os clichês se desejarem radicalizar: comida chinesa, lavanderia e pastelaria. Só não tentem atingir o movimento olímpico. Os Jogos apenas estarão em solo chinês. A verdadeira dona deles é a humanidade.

* Publicado em O Informativo do Vale, 21 de abril, na Gazeta do Sul e em O Correio de Cachoeira do Sul, 23 de abril, no Diário de Canoas, 28 de maio, em A Razão, 16 de junho, e no Jornal NH, 11 de agosto de 2008.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Protagonismo da perícia

A tragédia que vitimou Isabella de Oliveira Nardoni, no último dia 29, em São Paulo, colocou em evidência a atividade pericial. Independente dos resultados a serem alcançados pelos Institutos de Criminalística e Médico-Legal da capital paulista, a relevância da perícia já está demonstrada pela expectativa que gerou em todo o país. Formou-se o consenso de que os peritos são fundamentais para o esclarecimento dos fatos que tiveram como conseqüência o óbito da menina de cinco anos que foi jogada do apartamento do pai.

A cobertura jornalística do episódio se fixou no desenvolvimento dos exames periciais. Profissionais da imprensa e veículos de comunicação empenham seus recursos na caça das notícias mais recentes sobre os laudos realizados e na reprodução mais compreensível da ciência utilizada pelos expertos. Por vezes, a velocidade que a imprensa exige contrasta com o tempo que os peritos necessitam para chegar a conclusões. No entanto, esse processo é semelhante ao dos jornalistas nas reportagens especiais. Levam-se dias, semanas ou até meses juntando peças. Depois, elas são encaixadas em grupos. Na seqüência, buscam-se os detalhes que vão unir cada pedaço montado. Isso é o mais complicado. O que se quer está lá, mas se demora a enxergar. De repente, de tanto debruçar-se sobre o material, aparecem os vínculos. Trabalho concluído. É assim com todos os grandes quebra-cabeças como é o caso Isabella Nardoni.

A investigação da cena do crime deixou de ser um seriado policial americano e se tornou um documentário diário na mídia nacional. O poder judiciário, o ministério público e a polícia se encontram também na condição de espectadores, apenas privilegiados por terem mais acesso a informações do que o restante da platéia. Sob a luz dos refletores, sem perder a discrição exigida pela profissão, os peritos realizam os seus papéis de sempre: a constatação e a análise completa dos eventos e a interpretação técnico-científica dos vestígios encontrados no local da morte. A diferença é que a repercussão de um drama como o que levou a vida de Isabella faz com que tudo isso se torne público.

Os laudos periciais serão as únicas peças do inquérito policial que seguirão até o final do processo judicial. Essa constatação comprova a permanente dependência que delegados, defensores, promotores e juízes possuem em relação ao trabalho dos profissionais da criminalística e da medicina legal. Todos eles necessitam da perícia para exercerem com qualidade os seus ofícios.

Essas são situações cotidianas e servem para que se entenda porque os peritos são os protagonistas do momento. Esses profissionais precisam mesmo ser valorizados de acordo com a relevância que tem. Que a nossa sociedade não precise da morte chocante de outras crianças para compreender essa importância de forma definitiva.

* Publicada em O Informativo do Vale e no Jornal VS, 17 de abril, no Diário de Canoas, 22 de abril, em A Razão, 29 de abril, no Informe ABC - Informativo da Associação Brasileira de Criminalística, Março/Abril, e no Jornal NH, 23 de junho de 2008.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Surpresas de Páscoa

O fato da Páscoa ter sido tão cedo esse ano talvez permita que sejam recuperadas algumas reflexões que o período poderia ter ensejado, mas a precipitação de outros fatos importantes impediu. Esse artigo é um exemplo disso.

Nenhum feriado que agregue caráter comercial é mais peculiar que esse. Se não fosse a publicidade, seria estranha a união de coelhos, ovos e chocolate. Só a imaginação infantil para aceitar como natural essa fantasia.

No entanto, isso ficou mais bizarro quando fabricantes e marqueteiros conseguiram suplantar os limites dessa fabulação com a criação do brinde surpresa. No início, os ovos, quando recheados, traziam apenas mais chocolate na forma de bombons. Um dia alguém resolveu incluir aviõezinhos, carrinhos e bonequinhos. Quem convive com crianças conhece o poder dessa história. Elas exigem a compra, ficam doidas pelo brinquedo, mas não comem a guloseima.

Adotando a receita das surpresas de Páscoa com uma pitada de devaneio como ingrediente, poderiam ser especuladas quais maravilhas alguns adultos desejariam ter encontrado dentro dos ovos de chocolate. Que quimeras os teriam feito perder a razão e voltar a ser infantes.

O papa Bento XVI deve ter procurado sua cesta com a esperança de encontrar um novo pecado capital em um ovinho: a propaganda enganosa, quem sabe. Já outro grande líder espiritual, o Dalai Lama, após 49 anos de exílio, ainda deseja voltar para um Tibete livre do domínio chinês. O chocolate ele prefere deixar para os famintos, seja um dos bilhões da Índia, aonde vive, ou da China, aonde gostaria de viver.

Hillary Clinton ou Barack Obama e John McCain, candidatos à presidência dos Estados Unidos, ainda vão seguir até novembro ambicionando o salão oval da Casa Branca e todo poder que há lá dentro. No Brasil, o presidente Lula parece querer o prêmio do terceiro mandato, apesar de afirmar que desse mato não sai coelho.

Entre as celebridades internacionais que têm tudo, Paris Hilton precisa de uma calcinha que ainda não foi fotografada. Britney Spears se satisfaz em fazer mais um filho cuja guarda por fim perderá na justiça.

Eu? Já me contento com a publicação desse artigo. E você, o que esperava do coelhinho nessa Páscoa?

* Publicado no Diário de Canoas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 10 de abril, e no Diário Popular de Pelotas, 15 de abril de 2008.