segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Homem do ano, salvador da vez

O presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama II, não escapará de ser escolhido como a personalidade de maior destaque do ano de 2008 na maioria absoluta das enquetes. Seja a da revista Time ou qualquer outra. Obama foi guindado a essa posição por diversas razões sobre as quais já se escreveu quase tudo. Por isso, esse artigo não gastará espaço tratando de questões como fato dele ser negro ou mulato ou ter origem mulçumana. Nenhum desses temas pode ser maior do que os seus apoiadores e todo resto aguardam dele: a solução para a crise globalizada.

Em meio às celebrações de final de ano, Barack Obama, o novo líder do mundo livre como os norte-americanos designam quem elegem deve estar refletindo sobre as suas responsabilidades. Não há época mais propícia para isso. Nos lares cristãos como o de Obama, comemora-se o nascimento de Jesus de Nazaré, eterno homem dos últimos dois mil e oito anos e salvador de sempre. Pois então é possível crer que Barack (bendito, em árabe) saiba que está assumindo as vezes do Cristo de forma transitória como muitos antes dele. Ele também vai ter que encarar uma missão divina. Dele se espera nada menos que a redenção dos pecados de seu antecessor, dos que o escolheram e dos que dependem do império americano. Ou seja, o planeta Terra.

O homem que assumirá a presidência da poderosa nação representa no momento o clichê de salvador da pátria. Tudo em torno dele vira notícia, torna-se referência ou causa admiração. Foto sem camisa, esposa elegante, a compra de uma árvore de natal. Porém, Obama, hoje no papel de Messias, deve saber que o amanhã lhe reserva um longo calvário. O colapso do sistema financeiro que herda de George Walker Bush será a sua via-crúcis. Para enfrentar esse martírio, será necessário mais do que frases como "sim, nós podemos" ou "a esperança superou o medo". Ele precisará de resultados. O abençoado da hora deve ter a compreensão de que se não conseguir com celeridade o que dele se deseja o seu destino não será outro do que a crucificação no sentido figurado. E isso vai acontecer muito mais rápido do que ocorreu de fato com o Nazareno.

Barack Obama é, ou melhor, foi o homem do ano de 2008. No entanto, ele já deve ter tido a percepção de que o fundamental agora é usar toda sua audácia para ser o que interessa de verdade: a personalidade de 2009. Em clima de "adeus ano velho", o importante mesmo é o ano que vai nascer. Que tenhamos um feliz Obama para o bem de todos nós.

* Publicado em O Informativo do Vale e em A Razão, 29 de dezembro, no Jornal VS e no Diário Catarinense, 30 de dezembro, em A Notícia de Joinville, 31 de dezembro de 2008, e no Agora de Rio Grande, 03 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Bom é não ter bandidos

Bandido bom é bandido morto? Vivo? Ou o que não nasceu? Pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência registrou que 43% dos entrevistados responderam de forma afirmativa à primeira questão. Ao que consta, as demais não foram feitas. A leitura inicial do índice apontaria para uma significativa rejeição aos direitos dos infratores da lei. Todavia, esse percentual pode ser considerado baixo se a intenção dos participantes era apenas a de concordar com uma solução para os atuais índices de violência.

O maniqueísta perguntaria quem são os outros 57% que preferem os bandidos vivos? Os próprios criminosos? Seus amigos, parentes e familiares? Não é por aí. A problemática está na expressão explorada. Se o oposto dela tivesse sido usado, referindo-se a delinqüentes vivos, o percentual alcançado seria minguado. Logo, poderia se entender que o restante (superior aos 43% obtidos) tem a intolerância imaginada.

Na realidade, o mais crível em relação aos que disseram preferir os bandidos mortos é que eles desejam que não haja fora-da-lei e encontraram na eliminação a forma de encarar o problema. Ao que parece, a outra possibilidade existente ficou fora da pesquisa. Ou seja, o equacionamento da questão. Faltou uma alternativa que indicasse como impedir que os criminosos surjam. Nesse contexto, o levantamento é falho ao preocupar-se com um bordão sensacionalista sem buscar a visão dos entrevistados sobre outras opções.

É possível acreditar que a hipótese “bandido bom é o que não nasce” tivesse um índice superior ao do quesito pesquisado. Sabendo-se que os processos de ressocialização dos que cometem delitos de grande potencial ofensivo são difíceis e raros, resta agir no berço da infração da lei.

Quem discordaria de políticas públicas que protejam melhor e de forma mais ampla crianças e adolescentes? Quem divergiria da priorização da educação para conscientização dos deveres e limites de cada cidadão? Quem se oporia ao enfrentamento da impunidade que corrói a sociedade?

Assim, antes de desejar a morte de criminosos, independentemente de pesquisas e de debates em torno dos direitos humanos, o bom é não ter bandidos. Ou será que é querer demais?

* Publicado em Zero Hora, 17 de dezembro, em O Globo Online, 22 de dezembro de 2008, e no site do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 19 de janeiro de 2009.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A exabundância legislativa brasileira

O título é mesmo para ter cara de palavrão. É uma tentativa de expressar indignação, mas não passa de um sinônimo para exagero. Trata-se de uma referência à atividade parlamentar brasileira, mais do que prolixa na elaboração de leis. No momento, há algumas nas manchetes: uma proíbe demitir marido de grávida, outra quer impedir motoristas recém habilitados de dirigirem em estradas, e a pior, a da farra dos vereadores.

Aqui não se deseja debater o "mérito" dessas propostas. A questão está no fato de que muitas leis costumam não ser cumpridas sem que isso iniba a proliferação delas. Inclusive, pode enxergar-se um nexo lógico. A existência de regras demais, por vezes contraditórias, impede que todas sejam obedecidas. Logo, quase nenhuma norma é respeitada.

Cada nova lei significa que algumas antigas deixarão de ser observadas. Isso torna inviável que se aplique, por exemplo, uma política séria de tolerância zero. O governante que tentar isso de forma plena viverá um dilema parecido com o do médico Simão Bacamarte, protagonista da obra "O alienista", de Machado de Assis. No início é possível que ações na linha "dura lex, sede lex" sejam aplaudidas, mas chegará o tempo em que todos serão atingidos por não seguirem uma ou outra "leizinha". Por fim, a autoridade perceberá ou que só ela é reta ou que nem ela escapa de cometer alguma infração.

Por outro lado, desde sempre as legislações complexas apenas serviram para atingir os fracos e proteger os poderosos. Porém, não se trata de pregar a desobediência ao regramento constituído. Pelo contrário, o objetivo é encontrar uma forma para satisfazer as exigências que forem estabelecidas. Parece que isso seria mais provável se a quantidade de normas existentes fosse menos extensa do que é. A Constituição é muito longa. Existem inúmeros códigos. Quase 12 mil leis ordinárias federais e outros 12 mil projetos em tramitação no Congresso. Fora a soma das legislações estaduais e municipais, que se não ultrapassou em breve estará na casa do milhão. Isso é a exabundância.

Como reflexão final, cita-se o britânico de origem judaica Benjamin Disraeli, duas vezes primeiro-ministro do Reino Unido no século XIX, para quem as leis eram desnecessárias para os homens puros e inúteis para os corruptos. Nessa linha, não seria o caso de ficarmos no Brasil apenas com as leis úteis para os puros e as necessárias para os corruptos?

Em tempo: "Hecha la ley, hecha la trampa". Isso explica tanto tramposo solto por aí.

* Publicado em O Globo Online, 16 de dezembro, em O Correio de Cachoeira do Sul, 17 de dezembro, no Diário Popular de Pelotas, no Agora de Rio Grande e no Diário de Canoas, 18 de dezembro, em O Informativo do Vale, 22 de dezembro, e na Gazeta do Sul, 24 de dezembro de 2008.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Brasil, um destino de excursões para a impunidade

Os filmes norte-americanos costumam citar o "Brazil" como rota rumo à impunidade. Até o incrível Hulk, o monstro verde dos gibis, usa a Rocinha no Rio de Janeiro como refúgio na sua película mais recente. Não é só na ficção que isso ocorre. Lembrem-se do britânico Ronald Biggs, preso na Inglaterra após o roubo a um trem postal em 1963 e que fugiu para cá em 1970. Aqui Biggs acabou tornando-se uma celebridade de certo modo.

Pois essa vocação mereceria maiores investimentos. Hoje o turismo está cada vez mais segmentado. Há opções para a terceira idade, para o público GLS, para deficientes etc. Então, por que não usamos a impunidade como alternativa turística? Isso pode parecer ofensivo à ordem legal. E é. Porém, a indústria voltada à exploração sexual também não é? Aliás, muito mais agressiva à moral e nem assim suficientemente combatida.

Nesse contexto, cabe avaliar como se desenvolveriam as excursões para a impunidade. Trata-se da adequação de um produto nacional ao imaginário dos estrangeiros, tal qual o carnaval, por exemplo. É amplamente praticado no país, não como recreação, mas como negócio. Ou seja, o esquema é profissional. Também é uma atividade que conta com uma forte inserção na mídia, que não a incentiva, mas a divulga, garantindo a lembrança da marca no mercado consumidor.

Imaginem as possibilidades. No pacote mais simples, o habeas corpus preventivo precisaria ser adquirido à parte, o que no completo seria um benefício incluso. Na exclusiva versão Dantas, para banqueiros multimilionários, o adquirente ainda levaria uma súmula vinculante como brinde. E cada grupo que chegasse ao país, além de um guia, ainda teria a assistência 24 horas de um advogado criminalista.

Para os curiosos, como alternativa às turnês pelas favelas, haveria a visita de algumas horas a um presídio só para vivenciarem o destino dos menos favorecidos. E para os que preferem esportes radicais, a melhor opção seria ir a um estádio de futebol, com direito a briga de torcida organizada, podendo depredar banheiros e disparar tiros a esmo.

Além disso, o momento é favorável para esse processo. Até o uso de algemas foi relaxado, impedindo que os nossos futuros hóspedes sejam submetidos a esse tipo de constrangimento. Talvez o único problema que o turismo da impunidade venha a enfrentar seja o superfaturamento, mas como o cliente também vai dar calote, que se adapte o ditado. Ladrão que rouba ladrão ao menos vai aproveitar o feriadão.

* Publicado em O Globo Online, 09 de dezembro, na Gazeta do Sul, em O Correio de Cachoeira do Sul, em A Razão e no Diário Popular de Pelotas, 10 de dezembro, no Diário de Canoas, 24 de dezembro de 2008, e no Jornal VS, 15 de janeiro de 2009.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A Abin está a serviço de quem?

Por força de uma presença negativa na mídia, alguns formadores de opinião têm perguntado para que, afinal de contas, serve a Abin? A questão é oportuna e conveniente. A Agência Brasileira de Inteligência tem sido envolvida em uma série de eventos que exigem explicações além do razoável para serem aceitas. No entanto, a despeito dos resultados práticos, as confusões para as quais a Agência foi arrastada não podem ser razões para que se conteste a necessidade dela do ponto de vista institucional.

Independente do nome do órgão, seja CIA, KGB ou SNI, toda nação politicamente organizada necessita que a atividade de inteligência seja desenvolvida como estratégia de defesa. No geral, são os serviços de inteligência que abastecem a administração pública com as informações que ela necessita para subsidiar seus atos decisórios.

A legislação federal que criou a Abin também explica a necessidade de inteligência nesses moldes: como a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado.

Logo, parece ser possível responder com tranqüilidade a pergunta inicial. A Abin serve para executar e coordenar a atividade de inteligência em prol de toda nação, ou como diz o seu lema, "em defesa do Brasil".

Em um quadro de normalidade, isso deveria bastar para a maioria da população. Todavia, saindo da letra impressa da lei e passando a realidade, surge uma outra questão ainda mais pertinente: a Abin que tem virado notícia está a serviço de quem mesmo?

Quando uma Agência que devia desenvolver um trabalho tão vital e, correntemente, sigiloso, passa a ocupar os noticiários, quase sempre em posição desconfortável, parece que suas ações, além de não serem tão secretas assim, também estão distorcidas em relação aos seus verdadeiros destinatários, ou seja, a sociedade e o Estado.

A resposta para esse outro questionamento precisa ser dada de forma rápida e objetiva para que a utilidade da Abin deixe de ser contestada.

Uma boa maneira para que isso ocorra seria o exercício da atividade de inteligência de acordo com os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, já que o da publicidade ela tem seguido muito mal. Quem sabe desse jeito a Abin serviria melhor ao país e a todos nós.

* Publicado em O Globo Online, 19 de novembro, na Gazeta do Sul, 21 de novembro, no Diário Popular de Pelotas, 23 de novembro, e no Diário de Canoas, 02 de dezembro de 2008.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Um centavo é caro

Não fazem mais promoções como antigamente. Houve uma época que bastava juntar tampinhas de refrigerante para trocar por ioiôs, copos ou miniaturas. Hoje, além de consumir um produto para reunir seus rótulos, sempre é necessário dar mais algum dinheiro para levar as quinquilharias ofertadas. Independente do sucesso que as campanhas atuais possam ter, mesmo que o valor a ser pago seja de um centavo, já é mais caro do que a gratuidade de outrora.

Um artigo recente de Chris Anderson, editor da revista Wired, especializada em tecnologia, trata sobre a tendência global para a Freeconomics, a economia do grátis. Os marqueteiros brasileiros precisam lê-lo. Enquanto o mundo percebe que o futuro dos negócios é usar a gratuidade como forma de inserção comercial, no Brasil ainda se prefere levar vantagem em tudo. Ou seja, aumenta-se a venda da mercadoria com o junte e ganhe e ainda se lucra com o preço fixado para o brinde.

É preciso abrir um parêntese aqui. Não é a toa que haja fábricas de salsicha sofrendo abalo com a valorização do dólar. A mesquinharia empresarial brasileira faz com que se desvie o foco do negócio na direção da especulação financeira. Essa distorção nos interesses comerciais se repete no caso das vendas casadas travestidas de promoções.

Falando em embutidos, uma das mais absurdas ações promocionais dos últimos tempos estava por esses dias em um encarte de uma rede de supermercados. Na compra de três peças de mortadela com quinhentos gramas cada, com mais um centavo, o cliente levava uma bisnaga de patê. Custando um cem avos de real o patê se tornou caríssimo, pois ele trazia consigo o preço de um quilo e meio de mortadela. Calcule a quantidade de sanduíches com pão seco (uma bisnaga não dá nem para o começo) que resultariam dessa compra. Quem come tanta mortadela assim? E se come, precisa muito mais do que um patêzinho.

Quem inventou essa promoção tentou agradar o chefe e o contador da empresa, mas esqueceu de quem realmente importa: o consumidor. Como lembra Anderson em seu artigo, custo zero é o que as pessoas querem e o que cada vez mais encontrarão. Ou, traduzindo para o vernáculo do brasileiro, de graça até injeção na testa e ônibus errado porque nessas situações, como no case do patê, um centavo também já seria caro.

* Publicado em A Razão e no Diário Popular de Pelotas, 11 de novembro, em O Correio de Cachoeira do Sul, 12 de novembro, no Diário de Canoas, 15 de novembro de 2008, e no Jornal NH, 10 de fevereiro de 2009.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O fim das receitas

A turbulência mundial originada no sistema financeiro dos Estados Unidos e dos principais países do Hemisfério Norte demonstra que não há receita infalível. Tio Sam acordou do sonho americano em pânico. O pesadelo que se instaurou nos mercados não estava previsto em livros, trabalhos acadêmicos, seminários ou relatórios. Dessa vez não teve Nostradamus nem Mãe Dináh para avisar. Adivinhe? Até os palpites dos videntes estão em baixa.

As fórmulas prontas vendidas pelos donos da banca ou não foram usadas por eles ou, o que é mais provável, não funcionam. De fato os banqueiros quanto mais poderosos são, mais perto de quebrarem e pedirem ajuda para o governo estão. Isso porque cada qual conduz seu negócio em direção ao ganho máximo como se não houvesse amanhã. E como na letra de Renato Russo, na verdade não está havendo. Aliás, como também não existiu para o império romano, napoleônico ou nazista. Isto é, não há estratégias ou prescrições que vençam e enganem a todos para sempre.

Ser sábio nesse momento é duvidar de que haja analista, professor, conferencista ou consultor que saiba realmente o que está acontecendo. Os historiadores em 2108 talvez falem com propriedade sobre os dias atuais. Mas a humanidade agora, apesar de toda tecnologia disponível e informação em tempo real, parece ter tanta consciência das verdadeiras causas da esculhambação globalizada quanto os ameríndios do século 15 tiveram da Queda de Constantinopla ou os aborígines australianos do século 18 sabiam da Tomada da Bastilha.

Os grandes jogadores do mercado têm revelado desconhecimento sobre como agir. Oscilam desgovernados das ações para o dólar, do ouro para o petróleo, de mercadoria em mercadoria. Conforme o enunciado de Lavoisier, se todos parecem estar perdendo, alguém em algum lugar deve estar lucrando. Bush apela para tudo. Até para pacote econômico. Fosse ele candidato já teria surgido o nome de algum extremista que de uma caverna oriental estaria desestabilizando o planeta com um telefone esperto na mão e a idéia de acabar com o Grande Satã na cabeça. Não sendo isso, essa será outra questão para ser respondida no futuro pelas bolsas ou pelos bolsos que sobrarem.

Quando o muro de Berlim foi à lona, decretou-se o fim da história. Seria agora o fim desse fim? O que parece estar acabando são as receitas. Então, por favor, chamem um outro doutor. Ou seria melhor um mago? Detalhes em breve em alguma publicação de auto-ajuda na banca mais próxima de você.

* Publicado na Gazeta do Sul, 30 de outubro, no Agora de Rio Grande, 07 e 18 de novembro de 2008, e no Diário de Canoas, 07 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Segurança pública não é espetáculo

Um rapaz armado mantém refém sua ex-namorada em uma grande cidade do interior de São Paulo. As câmeras só conseguem focar o local do cativeiro de longe. Mesmo assim, esse conflito é a razão de horas ininterruptas de cobertura jornalística em mais de um canal. Um drama tratado como um outro programa televisivo qualquer. No centro dos acontecimentos, os refletores estão todos sobre a segurança pública.

Hoje é o caso Eloá. Ontem, foi Isabella Nardoni. Amanhã, haverá outro enredo, mas não será a última trama a receber essa atenção. São os lares brasileiros sendo invadidos por fragmentos da criminalidade e por toda sensação de insegurança que eles proporcionam. Nos meios de comunicação, a qualquer hora, é possível saber da última barbárie perpetrada. Certo mesmo é a chacina, o seqüestro, o latrocínio que será sensacionalmente divulgado no jornal das oito.

Não se pode brigar com as notícias. Elas precisam chegar aos espectadores. Há a liberdade de imprensa e o direito à informação. Necessita-se saber em que mundo se vive. É seguro sair de casa? É preciso proteger a família e a propriedade? Alienar-se ou ser alienado pelos outros é sempre pior. O conhecimento da realidade também é uma questão de segurança pública.

No entanto, junto com a difusão dos fatos tem vindo todo um circo. De horrores. A ausência de contextualização faz com que medos e inquietações se espalhem, atingindo aqueles que estão distantes dos focos da crise. Por vezes, há o reforço de preconceitos e a elaboração de pré-julgamentos. Um episódio como o que resultou na morte trágica de Eloá gera intranqüilidade em todas as latitudes. Se a violência é a principal convergência do noticiário, ela se torna o mais importante mesmo que haja registros de outra natureza.

Por mais mórbido que pareça, sabe-se que crimes e brutalidades mexem com a curiosidade humana. Suas implicações com a segurança pública são de interesse popular. Os problemas começam quando a notícia vira espetáculo. O show não pode parar, mas também não deveria gerar mais insegurança do que a sociedade já é obrigada a conviver. E após espremer o mundo até sair sangue, os apresentadores dos telejornais não poderiam dizer boa noite.

* Publicado em Zero Hora e em O Globo Online, 22 de outubro de 2008.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A invenção da década?

Não, não é o iPhone. Nem o Grande Colisor de Hádrons. Esse, aliás, já está em manutenção. Fez bang antes de ser big. A candidata à invenção da década é a resposta para uma das três questões da ficção científica que jamais poderiam se tornar realidade. As outras duas são o teletransporte e a viagem no tempo. A eureca dos dias atuais é um aparato capaz de ler mentes.

O Fast M – abreviatura em inglês de tecnologia móvel para rastreio de atributos futuros – é um sistema de detecção de más intenções que está sendo testado pelos norte-americanos para prevenir atentados. O equipamento interpreta dados biométricos e reações corporais, identificando tendências hostis, em tempo real e de forma não invasiva. Também conhecido como Malintent, o aparelho é um trailer modulado por dentro do qual as pessoas passam para ser examinadas.

A geringonça é um produto típico da paranóia pós-11 de setembro e da era Bush. Se a máquina faz o que almeja é irrelevante frente às possibilidades que se pode imaginar para algo assim. Começando pelos Estados Unidos, parece que o invento teria sido mais útil aos banqueiros quebrados se antes de darem crédito para qualquer um tivessem verificado a pretensão das pessoas em quitar suas dívidas. Se bem que a maioria sempre quer pagar seus débitos, o problema é ter dinheiro suficiente para saldar vinte cartões ao mesmo tempo.

Há aplicações mais universais para o produto. Por exemplo, seria o fim da forma como a política é feita hoje. Se os reais objetivos dos candidatos a cargos públicos pudessem ser conhecidos antes deles serem sufragados, os com inclinação para corrupção não seriam votados. Ou seriam? Qualquer semelhança com a realidade no caso é de propósito.

Talvez não haja aproveitamento mais desejado do que nas relações amorosas. Quanta traição seria evitada se fosse viável antecipar a disposição de cada pessoa em um relacionamento. Já os pais não precisariam perguntar quais as intenções dos rapazes com suas filhas (ainda se faz isso?). Apesar de que eles sempre estiveram cientes da resposta. Contudo, antes do genitor seria a própria menina que gostaria de saber se o namoradinho quer fazer mal a ela. E caso ele não queira, corre o risco de ser mandado ao inferno junto com o tal Fast M. Lá que é o lugar das boas intenções não é mesmo?

* Publicado em O Correio de Cachoeira do Sul, 17 de outubro, no Diário Popular de Pelotas, 18 de outubro, no Diário de Canoas, 20 de outubro, e na Gazeta do Sul, 24 de outubro de 2008.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Renda-se, estamos cercados

Resolvi batizar meu filho na mesma paróquia onde recebi esse sacramento. Terminada a cerimônia, era o momento das fotos. Queria uma com toda família na frente da igreja, igual à que tenho do meu batizado. Como a porta principal estava fechada, saímos por um acesso lateral. Ao chegar à rua, a decepção. A entrada do templo estava cercada. A fotografia teve que ser feita na calçada, tendo as grades como moldura.

Lamentei que a insegurança tivesse abraçado com barras de ferro a minha igreja. Porém, lembrei de algo que foi comentado na palestra preparatória do batismo. Mais de 40 grupos se reúnem na paróquia todos os dias nos mais variados horários. Crianças, jovens, adultos e idosos. Pessoas que necessitam de ajuda ou que querem colaborar. Elas vão lá pela fé que têm, mas conclui que também por se sentirem seguras rodeadas pelas grades.

O aumento no número de shoppings, preferidos por muitos até para o almoço familiar de domingo, tem a mesma causa, o real sentimento de proteção, diferenciando-se das vias públicas onde o temor é permanente. Aliás, fortificações são desde a antiguidade razões para que o ser humano se sinta seguro, conviva socialmente e mantenha relações econômicas. As biografias das cidades sempre se confundiram com a história de suas muralhas. E os nossos doces lares, com suas trancas e cadeados, são o que além de prisões de segurança máxima?

No espaço urbano, como última estância da vida sem grades restam apenas alguns grandes parques, por enquanto, pois em breve a insegurança fará todos capitularem nesse ponto também.

Logo estarei levando meu filho aos parques. Como não desejo que ele pise em agulhas infectadas, preservativos usados ou excrementos, vestígios de atos praticados nesses espaços quando a maioria descansa em casa, também quero gradear as áreas verdes.

Insegurança é uma condição social presente. Para modificar isso é necessário um processo demorado com abrangência cultural e econômica. Mas hoje não há escapatória. Renda-se ao cercamento dos parques de sua cidade porque já é assim que vivemos em nossas casas.

* Publicado em O Globo Online, 09 de outubro, em O Informativo do Vale, 10 de outubro, em A Razão, 11 de outubro, e em O Correio de Cachoeira do Sul, 14 de outubro de 2008, e no Diário de Canoas, 22 de abril de 2009.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O laudo e os "maletas"

O laudo da Polícia Federal concluiu que as maletas da Abin não possuem a capacidade de realizar o grampo do qual foi vítima o presidente do Supremo Tribunal Federal, conforme já havia adiantado a companhia fabricante dos equipamentos. Insatisfeito com o resultado, o deputado Marcelo Itagiba, delegado federal e presidente da CPI das Escutas Clandestinas, resolveu solicitar novos exames para o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações de Campinas, uma fundação privada sem vínculos com órgãos periciais. Itagiba justificou que a Comissão é independente para fazer isso. Ao tomar essa atitude o deputado fez exatamente o contrário: a CPI passou de órgão isento a parte de um litígio. Para compreender esse erro basta verificar como se dão os procedimentos judiciais.

Nos casos de natureza criminal, toda vez que uma prova técnica é requerida, essa responsabilidade recai em uma instituição oficial. No confronto que se estabelece nos processos, quando uma das partes se sente prejudicada pelas conclusões da perícia, ela pode recorrer à contratação de um assistente particular e constituir a sua própria prova técnica.

Contrariado com o laudo, o presidente da CPI optou por profissionais que não estão investidos da fé pública intrínseca aos peritos oficiais. Assim o objetivo do novo trabalho não é outro do que procurar respostas que melhor satisfaçam interesses políticos.

A Comissão poderia continuar independente se recorresse a algum dos outros 27 serviços periciais oficiais disponíveis no Brasil. Se a preocupação do deputado oriundo da Polícia Federal é a de que os peritos dessa instituição têm vínculos com a estrutura policial, a CPI poderia escolher um dos 18 estados em que a perícia oficial é autônoma como, por exemplo, o Instituto-Geral de Perícias gaúcho.

Privatizando a produção da perícia, a Comissão desvaloriza a prova técnica oficial. O mesmo faz o presidente do Supremo quando diz que o laudo apresentado é insuficiente, assim como o ministro da Defesa ao insistir em afirmar que o equipamento faz o que nem quem o fabrica consegue realizar. Se sob o ponto de vista pericial o caso foi esclarecido, o que restou foi uma cansativa disputa de vaidades entre os verdadeiros "maletas" do episódio. Para verificar isso, é só fazer a perícia.

* Publicado em A Razão, 03 de outubro, no Diário Catarinense, 07 de outubro de 2008, e no Diário de Canoas, 07 de março de 2009.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Bolsa-tênis e tíquete-vida

"Bandido mata para roubar tênis". Essa frase já foi manchete um dia e nunca pode ser banalizada. Se uma vida vale menos que um calçado, a inversão de valores está escancarada. Quando se define alguém pelas coisas que ela tem, a pessoa acaba avaliada pelo que pode comprar. Um calçado esportivo autêntico e de marca custa mais que o salário mínimo, que o soldo de um policial, que o vencimento de uma professora. Vale tanto quanto uma arma ilegal. No entanto, depois de roubado, com freqüência é trocado por pedras de crack que custam apenas alguns reais cada. Com perdão de Camões, o vício no caso é o valor mais alto que se levanta.

A ascensão do tênis como objeto de desejo é uma prova da força que possui a publicidade ao associar atitudes a marcas. "Impossível é nada" e "eu sou o que sou" são exemplos de conceitos que determinados logotipos em calçados esportivos representam para quem os consome. O poder da marca também é a porta para outros crimes como pirataria e contrabando. Se o valor reside no símbolo destacado no tênis, a qualidade e a origem do produto se tornam secundárias. O que importa é a insígnia do fabricante que dará ao portador a sensação de ter as qualidades que são associadas a ela. A mágica é que as aparências realmente enganam.

Ao tênis acabam associados o roubo, o latrocínio, a falsificação, o descaminho e outros delitos utilizados para a obtenção de uma renda que o trabalho legal muitas vezes não proporciona. Inclusive, o calçado virou gíria para designar armas. A suspeita sobre o cantor Belo que acabou preso começou numa conversa telefônica interceptada na qual ele emprestaria dinheiro a um traficante em troca de um "tênis" AR-15.

Questões para que o Estado conserte ou, mais especificamente, para que a segurança pública resolva. Dentro da atual linha de políticas públicas adotadas, talvez seja o momento dos governos criarem um programa social do tipo bolsa-tênis com a distribuição em massa de calçados da moda para todos que se sentem marginalizados por não terem como adquirir esse produto e os adjetivos que ele carrega. Resolvido o problema do tênis, só faltaria acabar com o contrabando de armas, o narcotráfico, a corrupção, etc.

Como se costuma dizer, se fosse fácil assim já teria sido feito. A realidade é mais complexa, mas um começo possível seria revisar as nossas prioridades. Ou se passa a gostar das pessoas pelo que elas são ou logo teremos o bolsa-tênis, o vale-crack, o tíquete-vida...

* Publicado em O Globo Online, 24 de setembro, no Diário Popular de Pelotas, 30 de setembro, no Diário de Canoas e Jornal VS, 1° de outubro, e na Gazeta do Sul, 07 de outubro de 2008.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Eleições pré-sal

Desde que a escolha dos prefeitos das capitais voltou a ser de forma direta, não se vive uma eleição tão insípida. A propaganda eleitoral veiculada nesse pleito só é superada na monotonia pela dos tempos da Lei Falcão, quando a televisão reproduzia apenas a fotografia do candidato enquanto o currículo dele era lido.

Os candidatos viraram marcas de sabão em pó. Embalagens (partidos) diferentes, promessas iguais. Tentam provar que fazem o mesmo que os outros só que melhor. Não há originalidade nem criatividade. Não há sonho nem emoção. Faltam apelos que mobilizem os eleitores em torno de algo.

Um indicador é o número de automóveis que portam adesivos de aspirantes a prefeito, por exemplo. Lembre-se de outras eleições e compare. Hoje é raro o carro em que o proprietário declara sua preferência sem que ele seja familiar ou pretendente a cargo de confiança.

Nem nos aspectos folclóricos essas eleições vão bem. A urna eletrônica acabou com o Cacareco e o macaco Tião. Até o Enéas morreu. De estranho só o fato de que boa parte dos postulantes aos cargos de vereadores diz ser capaz de resolver 508 anos de problemas federais. Tudo isso vale para grande maioria dos municípios do país.

Alguns culpam as restrições impostas pela legislação eleitoral por esse pleito de pés no chão que não consegue decolar. Outros creditam à maior fiscalização dos gastos a debilidade das campanhas de publicidade. Seria até possível crer nisso, mas o Tribunal Superior Eleitoral demonstrou o contrário.

A única propaganda boa o suficiente para gerar comentários, movimentar o cenário e causar polêmica foi a do Tribunal. Até um bordão ela conseguiu fixar na cabeça do povo. Quem não gravou que quatro anos é muito tempo? De tão eficaz que foi a mensagem, ela fez com que alguns políticos provocassem a sua retirada por se sentirem atingidos. Porém o TSE acertou outra vez ao lançar um novo conjunto de inserções. Os comerciais protagonizados por Lavínia Vlasak provam que se for para agir como um ator quando se fala em política, que se escolha um profissional. E grávida então? Por que nenhuma candidata pensou nesse tipo de comoção antes? Se o sufrágio fosse ainda em papel, Lavínia faria muitos votos por aí.

Como hoje só se fala em pré-sal, pode-se dizer que esta também é a característica desse pleito eleitoral. Ou seja, antes do sal, sem tempero ou sabor, insosso. Aliás, se paladar não se discute, sem debates interessantes, as eleições atuais só podem mesmo ser classificadas como sem gosto. Blergh!

* Publicado na Gazeta do Sul, no Diário de Canoas e em O Globo Online, 19 de setembro, no Diário Catarinense, 25 de setembro, e no Diário Popular de Pelotas, 26 de setembro de 2008.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Pedágios, tubaína e a Madonna

O debate promovido por especialistas em torno dos pedágios dificilmente escapa do confronto ideológico. Existem argumentos válidos tanto para os que são contra como para os que estão a favor. Já para os demais cidadãos o que importa é o custo e o benefício. Se as tarifas fossem mais baratas quase não haveria reclamações. Se as estradas estivessem em excelentes condições, o muxoxo seria inaudível. O fato é que o preço está acima do aceitável e o estado das rodovias longe do esperado. Aliás, o esforço marqueteiro das concessionárias neste aspecto beira o inacreditável. Tentam provar que vias mais ou menos são ótimas e que o custo elevado é compatível com o serviço oferecido. No entanto, em um mundo que tem tubaína e a Madonna isso não é crível.

Quando o consumidor troca um refrigerante de marca por um genérico da linha popular sabe que não terá a qualidade da cola e do guaraná original, mas a razão do freguês é clara. Ele procura pelo produto mais barato. Quem escolhe pagar menos o faz sem esperar pelo melhor. Só se aceita beber tubaína porque o preço é baixo.

Em contrapartida, quando essa turma decide ir a um espetáculo internacional do nível que a Madonna irá realizar em dezembro no Brasil, o valor a ser gasto se torna secundário. O entretenimento será caro, porém se está ciente que ele vale isso. Não pela excelência musical, algo que pode até ser discutível. O que pesa é a experiência diferenciada que uma artista dessa categoria costuma proporcionar.

Com os pedágios, a tendência é a mesma. Como as rodovias oferecidas não são mais do que genéricos populares, não se fica satisfeito pagando qualquer centavo a mais do que preço de “refrigereco”. E pelos valores atuais, ninguém aceita nada inferior a estradas de primeira linha com gabarito internacional.

A relação entre custo e benefício é um indicador que a intuição do cidadão consegue expressar em termos monetários, devido à repercussão que sente em seu bolso ao avaliar gastos e ganhos. Com as rodovias o processo é semelhante ao que se está acostumado a realizar quando se compra um refrigerante, um ingresso para um espetáculo ou qualquer outra coisa.

Não sendo viável um padrão com tarifas baratas e estradas de qualidade, a única discussão que restará a respeito dos pedágios é essa. Ou o modelo adotado é todo com características de tubaína ou só com atributos de estrela mundial. Enquanto isso não ocorre, seguimos pagando preço de Madonna para dirigir em rodovias de módicas condições.

* Publicado no Agora de Rio Grande e no Diário Popular de Pelotas, 11 de setembro, no Diário Catarinense, 12 de setembro, e no Diário de Canoas, 15 de setembro de 2008.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Investimentos olímpicos

Investimentos olímpicos

O fato de o Brasil ser um país com a vocação para o desperdício provocou uma reação compreensiva. Toda despesa é questionada sob o viés da responsabilidade fiscal, sem diferenciar-se o que é gasto do que é investimento. É o caso do debate em torno dos recursos empregados no esporte olímpico.

Segundo reportagem do jornal O Globo, aplicando-se a frieza contábil, chegou-se ao valor de R$ 53 milhões como o custo de cada medalha brasileira conquistada na China. Nesse cálculo, incorre-se em três erros: falta de paradigma financeiro; subestimação da importância do esporte; e incompreensão dos resultados alcançados.

Quanto deveria ser investido na obtenção de uma medalha? A China ganhou cem delas e gastou R$ 68 bilhões para realizar os Jogos (R$ 680 milhões para cada ouro, prata ou bronze). Logo, cada uma custou quase treze vezes mais do que as brasileiras. Ou seja, para atingir um rendimento chinês, o Brasil precisaria usar esse fator de multiplicação, seja nos valores, seja no tempo de preparação. Já que se reclama do dinheiro consumido no ciclo olímpico, o que implica na ausência de perspectiva de aumento dele, restaria esperar mais 52 anos para se ter uma colocação que não possa ser chamada de pífia.

A cultura fiscal costuma esquecer a repercussão social de algumas despesas. É preciso lembrar que os dispêndios olímpicos envolvem a remuneração não só de atletas, mas de toda uma indústria – de cadarços de tênis a criação de cavalos. De forma direta e indireta, há geração de emprego e movimentação econômica associada ao esporte. Deve acrescentar-se ainda o exemplo que é transmitido de saúde e de qualidade de vida.

Por fim, a contabilidade das conquistas apenas pelo número de medalhas oblitera visíveis avanços do país. As mulheres ocuparam espaços em modalidades antes dominadas pelos homens. As participações em finais aumentaram de 30 em Atenas para 38 agora. E houve inúmeras colocações classificadas como as melhores da história. Além disso, ocorreu uma enorme renovação de atletas o que redundou em menos ouros, mas também na perspectiva de que em Londres, com experiência, eles sejam mais bem sucedidos.

Fiscalizar o que se gasta é fundamental, mas isso não pode ser pretexto para redução dos recursos aplicados no desenvolvimento esportivo, nem razão para se ter menos orgulho. Dinheiro colocado no esporte nunca é desperdício. Os dólares, euros ou reais lançados na coluna das despesas olímpicas são sempre investimentos. Os chineses que o digam.

* Publicado no Diário de Canoas, 04 de setembro, em O Informativo do Vale, 15 de setembro, e no Jornal VS, 13 de outubro de 2008.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Uns às urnas, outros às aulas

Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar à escola. Essa frase circula pela rede mundial de computadores entre as chamadas "pérolas de vestibulares" - respostas que causam riso ou estranhamento. Lógico, se alguém é analfabeto, nunca freqüentou a escola. Portanto, como iria voltar?

Contudo, o indeferimento por analfabetismo de candidaturas no atual processo de eleições municipais concedeu algum sentido a essa sentença. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, são 289 nessa situação com incidência em todas as regiões do país. A epígrafe adquire força porque o posicionamento do Judiciário significa a oportunidade de que esses cidadãos retornem às aulas. Ao invés de seguir o caminho das urnas que pode levar à Câmara de Vereadores, nos próximos quatro anos eles terão a chance de voltar para a escola. E vão precisar.

O teste de alfabetização aplicado em inúmeras comarcas consiste de ditados curtos com pequenas variações conforme os entendimentos dos juízes eleitorais. Além disso, quase sempre os candidatos devem preencher seus dados pessoais como nome, data de nascimento e profissão. Ou seja, precisam dar uma pequena prova que sabem escrever. Mas não conseguem.

O número de analfabetos flagrados entre os registros de candidaturas é ínfimo. Porém, o que deveria causar mais preocupação é os 90.676 disputantes que o grau de instrução se resume a ler e escrever. Esse número representa que um a cada quatro se encontra nessa condição em todo Brasil. A princípio, habilitados a passar em um teste primário de escrita, mas talvez incapazes de exercer uma das principais atividades legislativas: representar a população na avaliação de projetos de lei. Para tanto, mais do que ter a aptidão para enfrentar um ditado, é preciso ser capaz de compreender um texto escrito. Caso contrário se está sujeito a decidir sobre o que não entende ou ser manipulado por interpretações de terceiros.

Em uma reforma política séria, critérios que definam melhor a forma de verificar o grau de instrução dos candidatos deveriam ser estabelecidos. Sugere-se que Mário Quintana seja lembrado. Ele dizia que os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem. Incluem-se aí também os que não entendem o que lêem. Discriminação? Não. Sempre será uma oportunidade para eles irem à escola.

* Publicado em O Globo Online, 27 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 28 de agosto, no A Razão, 29 de agosto, na Gazeta do Sul, 02 de setembro, e no Jornal VS, 12 de setembro de 2008.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Marte vai ser aqui

Desde a chegada da sonda Phoenix em Marte no final de maio, novas descobertas sobre o quarto planeta do Sistema Solar foram realizadas. As últimas tratam do encontro de perclorato no solo marciano, substância nociva a algumas formas de vida. Esse achado ainda requer confirmação, mas já se discute como ele afetaria a capacidade daquele astro ser habitável.

Desenvolver um projeto de colonização futura em Marte é uma das motivações do esforço exploratório. Busca-se a confirmação da presença de água e da possibilidade de vir a existir vida lá. Inclusive, em teoria, especula-se a respeito de um processo chamado de “terraformação” que em cerca de dois séculos transformaria o Planeta Vermelho em um mundo verde e azul – agricultável e com oceanos.

No entanto, ao prestar-se atenção na Terra, o atual corpo celeste no qual moram mais de seis bilhões de pessoas, parece ser mais viável que nessas duas centenas de anos se dê o contrário. Ao invés de modificar outro planeta, aqui é que pode virar algo parecido com o que Marte é agora – um lugar sem vida.

Exagero? Enquanto se busca água em Marte, a FAO, agência das Nações Unidas para agricultura e alimentação, já alertou que em vinte anos faltará água para dois terços da população do mundo. O dióxido de carbono corresponde a mais de 95 por cento da atmosfera marciana. De acordo com o instituto americano Center for Global Development, no ano passado os países desenvolvidos emitiram mais de sete bilhões e meio de toneladas de gás carbônico apenas na geração de energia. Marte tem uma superfície absolutamente erma. Segundo a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação hoje um terço da Terra corre o risco de virar deserto. Não há provas de que haja qualquer tipo de flora ou fauna no Planeta Vermelho mesmo que microscópica. No livro O Futuro da Vida, o biólogo Edward O. Wilson estima que, mantida a atual taxa de destruição dos ecossistemas causada pelo homem, metade de todas as espécies de seres vivos estará extinta em cem anos.

Além disso, não se está livre do terrorismo, das guerras globais, de pandemias, da escassez de alimentos e de outros tipos de extermínio. Assim, se a pretensão é tornar um outro planeta habitável, é preciso antes garantir que a Terra não seja a próxima rocha vazia que talvez outras vidas ditas inteligentes venham a explorar daqui a alguns milênios. Ou se preserva a biosfera ou Marte é que vai ser aqui.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 22 de agosto, em A Notícia de Joinville, 26 de agosto, e no Jornal VS, 30 de agosto de 2008.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Cada um no seu quadrado

O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) esteve reunido em Porto Alegre no final de julho. Imagina-se que toda vez que esse colegiado se forma, o objetivo seja debater a qualidade do ensino. Erra quem pensa assim. Na capital gaúcha, os secretários discutiram a legislação que instituiu o piso salarial para professores da rede pública. Eles pretendem a revisão da lei ou ameaçam rebelar-se contra ela.

Os membros do Consed estão entre os beneficiados com a possibilidade de os professores serem mais bem remunerados porque isso servirá de atração para profissionais mais preparados e motivará os atuais educadores. No entanto, mobilizam-se para que isso não aconteça, voltando o seu foco para o impacto financeiro da medida como se fossem os responsáveis pela Fazenda de seus estados.

O que deveria se esperar de uma reunião que tem como pauta os vencimentos dos professores é o questionamento do atual modelo que implica em baixos salários. O ensino e os estabelecimentos oficiais requerem educadores investidos de cargos públicos e atrelados ao sistema de previdência estadual? Os recursos despendidos não teriam melhor aproveitamento em parcerias com a iniciativa privada, que costuma pagar mais e gastar menos? Esse talvez ainda seja um debate com forte viés econômico, mas ao menos ele é voltado para problemas estruturais e soluções pró-ativas.

O fato é que a organização dos governos pressupõe um titular para cada área. Se já existe alguém com o encargo de cuidar das despesas e receitas, não haveria a necessidade de que os secretários da educação relegassem as suas funções para tratar de questões meramente financeiras. Da mesma forma, não caberia à Fazenda pública avaliar a pertinência de qualquer medida solicitada, devendo ater-se à análise se existem os recursos para as necessidades de cada setor. Por exemplo, quem sabe quanto efetivo e equipamento precisa para garantir a ordem é a Segurança Pública; quem estabelece política de prevenção e tratamento de doenças é a Saúde.

É correto que todos os escalões dos governos estejam comprometidos com os resultados fiscais. Porém, a administração é dividida em pastas para que cada uma priorize as tarefas de sua área, observe os limites do que pode fazer e deixe o que está fora de sua esfera para quem de direito. Todos podem até dançar no mesmo ritmo, mas, como diz o sucesso popular, cada um no seu quadrado. E sem pisar na linha.

* Publicado na Gazeta do Sul e em O Globo Online, 12 de agosto, em O Informativo do Vale, 13 de agosto, no Diário de Canoas, 15 de agosto, e no Diário Popular de Pelotas, 17 de agosto de 2008.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Conjunção adversa à ética

Rouba, mas faz. Essa frase tem justificado a atuação de vários políticos desde Adhemar de Barros (1901-1969), duas vezes governador de São Paulo, a quem a sentença é atribuída. No recente episódio do banqueiro algemado pela Polícia Federal, um senador afirmou que se tratava de um bandido, mas que produz e gera emprego. Ou seja, essa é uma mentalidade que ainda tem forte aceitação no País. Uma parcela da população costuma valorizar os resultados obtidos em detrimento da conduta utilizada para alcançá-los. Essa anuência ocorre em todos os níveis. Sempre há uma conjunção adversativa para justificar a falta de ética de alguém. De um estafeta ao presidente da República.

Se o condomínio aumenta e nada acontece no prédio, o síndico vira suspeito. Quando começam as obras, ele ganha fama de quem faz. Não obstante, a pecha de que está levando algum por fora nunca desaparece. Edifício reformado, ele é reeleito. Ninguém respeita o seu sindicato, pois os dirigentes são considerados aproveitadores. Começa a greve e um pequeno reajuste é concedido. Os de sempre continuam mandando. Apesar disso ainda são tachados de tirarem vantagem do cargo. O diretor leva uma beirada em cada venda de jogador, ainda assim o time é campeão. Ele se eterniza no clube. Não falta quem diga: rouba, no entanto, é vencedor.

Não só quem está no poder se enquadra nessa situação. No cotidiano, é comum o uso da idéia de contraste ético entre duas assertivas. Ele ultrapassou pelo acostamento, mas dirige bem. Cobrou de pacientes do SUS, porém, é um médico competente. Espancou os filhos, contudo, é um pai zeloso. Colou na prova, todavia é ótimo aluno. Aceitou propina, entretanto, é bom funcionário.

A ausência de moralidade não é algo percebido só na administração pública. O seu esquecimento se verifica no dia-a-dia. Os governantes corruptos apenas reproduzem um comportamento presente na sociedade. A condescendência como constante tem sido a conjuntura mais adversa à ética. O juízo entre o que é certo ou errado não deveria conviver com mas, porém, contudo, todavia, entretanto...

Mário Covas (1930-2001), outro ex-governador paulista, em seu tempo cunhou a frase que desmistifica a epígrafe: “É preciso acabar com o rouba, mas faz. Quem não rouba, faz mais.” Em qualquer conjunção.

* Publicado em A Platéia, 04 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 07 de agosto, na Gazeta do Sul, 22 de agosto, e no Diário de Canoas, 03 de novembro de 2008.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Os mais despreparados

Em episódios recentes, policiais do Rio de Janeiro assassinaram cidadãos inocentes – um estudante, um menino de três anos e um administrador. PMs do Paraná nesse período tiraram a vida de uma jovem. No último dia 18, a polícia vitimou uma menina de nove anos em Recife. Fatos de destaque na mídia que talvez não tenham sido os únicos dessa natureza. E é possível que entre a produção desse artigo e a sua publicação outros mais ocorram.

Polícia que mata é um problema antigo (vide o livro "Rota 66", de Caco Barcellos, por exemplo) que a consolidação do Estado Democrático de Direito possibilita que seja cada vez mais denunciado e apurado. Nesses casos, políticos costumam ser ágeis em adjetivar os policiais como "mal preparados", para dizer o mínimo. Uma qualificação mais do que justa.

No entanto, quando repetidamente agentes da Lei ceifam vidas, a incompetência costuma estar entre aqueles que têm o poder da caneta para distribuir armas e insígnias. Como se diz no futebol, jogador ruim não tem culpa de ser escalado. A responsabilidade é de quem o contrata.

Em diversos estados da Federação, a explicação para o despreparo policial está na ausência de diretrizes para formação e atualização. O ciclo se dá assim: primeiro permite-se que o efetivo se reduza até níveis de quase inoperância. Como paliativo, contrata-se em grande quantidade. Pela necessidade de que os novos agentes estejam logo nas ruas, abrevia-se a preparação. Além do tempo curto de orientação, o número elevado de alunos afeta a qualidade do treinamento. E o critério de escolha dos instrutores não é só o do conhecimento, às vezes apenas encontrado fora da Corporação, mas também o da complementação de renda dos colegas com o pagamento de horas-aula.

Colocado o policial em serviço, nunca mais ele volta à academia para reciclar procedimentos, porque sempre falta pessoal e ninguém pode ser tirado do trabalho. Como resultado, produz-se agentes mais sujeitos a cometer erros e matar inocentes. Para completar, aqueles que deveriam formular as políticas de qualificação desses servidores vão aos microfones chamá-los de monstros.

Usando outra metáfora futebolística, se adjetivação ganhasse jogo, o campeonato entre "Aurélio" e "Houaiss" terminaria empatado. Então que denominação resta para quem toma as decisões que armam e fardam a polícia que mata? Afinal de contas, quem são os mais despreparados?

Aliás, quando se fala em meritocracia, o que se quer dizer é que os servidores precisam demonstrar qualificação nas suas atividades para justificarem os postos que ocupam. Logo o mesmo tem que valer para os responsáveis pelas políticas públicas. Na área da segurança esse seria ponto ideal para que os problemas comecem a ser resolvidos.

* Publicado na Gazeta do Sul e em O Globo Online, 29 de julho, no Diário de Canoas, 1° de agosto, no Jornal VS, 15 de agosto, e no Jornal NH, 25 de agosto de 2008.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Zumbis da inflação

Metáforas transferem significados a âmbitos distintos do original. No jornalismo, elas tendem a virar lugares-comuns. Leão do imposto de renda, elefante branco para obras públicas inacabadas, sanguessugas da saúde. E há o dragão da inflação. O gigantesco lagarto alado que cospe fogo representa a desproporção entre o aumento de preços e o poder de compra da população. Vivendo uma estabilidade econômica desde 1994, o Brasil acreditou que esse mito estava extinto. No entanto, este ano a inflação retornou acompanhada da velha metáfora.

Esta volta requer uma nova alegoria. O jornalismo como permanente representação da realidade social não deve atrelar-se a signos do passado. Nesse sentido, apresenta-se um símbolo contemporâneo: os zumbis. Personagens de um gênero da ficção de horror que está na moda, eles têm sido revitalizados na literatura e no cinema. Nas grandes cidades do mundo, jovens realizam caminhadas anuais para homenageá-los.

Basta uma descrição mais detalhada para que se vejam as semelhanças entre essas criaturas e a inflação. Para começar, nunca se sabe bem como surgem. Há apenas teorias. Elas eclodem por todas as partes com uma agressividade irracional e um apetite incontrolável. Como uma epidemia viral, transmitida de forma endêmica, o fenômeno se espalha na sociedade, devorando a todos, afetando raciocínios e gerando mais dele mesmo. Zumbis e a alta de preços se multiplicam com voracidade e sem racionalidade.

Tem mais. O fato de serem sempre em um maior número do que a população consegue encarar mantém a representação de desproporcionalidade como na metáfora antiga. Algumas vezes, cogita-se a possibilidade de domar as criaturas. Em outras, chega-se a imaginar que elas foram erradicadas. Aliás, mortos-vivos só morrem de verdade ao levar um tiro na cabeça (recordam-se do ex-presidente Collor e sua tentativa frustrada de acabar com a inflação com uma única "bala"?). A domesticação e a suposta extinção nunca funcionam. Isso é o que está acontecendo com o atual processo inflacionário. Logo, não é um dragão que estamos enfrentando. Preparem-se é para os zumbis da inflação. Eles é que estão nos assombrando por aí.

* Publicado em A Razão e em O Globo Online, 21 de julho, no Diário de Canoas, 25 de julho, Diário Popular de Pelotas, 27 de julho, e no A Notícia de Joinville, 28 de julho de 2008.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Se fosse um desses negrinhos

Se fosse ao menos um desses negrinhos fujões, desses que não conhecem o seu lugar, que vivem de roubar galinhas para não morrer de fome, ninguém teria reparado nele sendo levado a ferros para a senzala. Porém, quando se ficou sabendo que o “coroné” Ladine havia sido acorrentado e arrastado pelos grilhões para fora da casa-grande por um capitão-do-mato, os doutores, os nobres, a corte toda se quedou horrorizada. Quem que aquele empregadinho público de última categoria estava imaginando que era prendendo uma pessoa como aquela, oriunda das melhores cepas de nossa sociedade, a família d’Satan? Multiplicaram-se discursos repudiando o fato de que um homem de bem, um cidadão que produz riqueza para esse País, um personagem da nossa história, havia sido humilhado e tratado pela lei como se fosse igual aos demais.

Mas nada revoltou mais às altas rodas do que a informação de que o capitão havia recusado um conto de réis em ouro para fechar um olho para uma ou outra travessura do “coroné”. Nunca algum doutor ou nobre havia se negado por uma quantia dessas ou até menor, porque um conto é um conto, a atender a um pedido de tão distinta figura, de tão proeminente fidalgo. Um favor, uma benevolência, um singelo beija-mão. O que era isso perto do valor da amizade entre pares, freqüentadores dos mesmos salões, degustadores dos mesmos vinhos, aproveitadores da mesma bela vida?

E não foi só o ato da negativa ao valor em si que ofendeu a nobiliarquia. Ainda querem usar essa oferta quase impoluta, quase inocente, como arma para vilipendiar ainda mais a imagem de tão ilustre benfeitor, para dilapidar o patrimônio moral de tão notável compatriota. Isso não haveria de ficar assim. Que se acione o meritíssimo, o excelentíssimo ou, até, se preciso, o reverendíssimo, para livrar o “coroné” Ladine dessa condição ultrajante de ser mais um entre aqueles para quem as leis realmente foram feitas. Era preciso resolver tudo antes da aurora. Um d’Satan jamais haveria de ver o sol nascer quadrado. Onde essa gente pensa que está? Com quem eles julgam que estão tratando? Será que não se enxergam? É uma pouca vergonha. Se ao menos fosse um desses negrinhos...

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 16 de julho de 2008, e no Diário de Canoas, 17 de março de 2009.

terça-feira, 8 de julho de 2008

A outra metade

Pode virar lei. Só depende de sanção presidencial. Foi aprovado projeto que obriga rádios e televisões a reservarem espaço para no mínimo 50% de notícias positivas. A iniciativa é do Senado. Da Romênia. O país do Leste Europeu, que entre 1965 e 1989 viveu sob a ditadura de Nicolae Ceausescu, hoje é governado por uma maioria liberal liderada pelo Partido Democrata. Considerando isso, é irônica a opção pela censura, característica de regimes de exceção, ainda que disfarçada. Como outrora, quem mais vai definir o que é bom ou ruim senão os poderes de Estado?

Os romenos estão fazendo algo que outras democracias tentaram e não conseguiram. Em 2003, Lula declarou que "notícia é aquilo que não queremos que seja publicado, o resto é publicidade". No ano seguinte, encaminhou ao Congresso projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo para orientar, disciplinar e fiscalizar a atividade. Desistiu por causa da pressão social. No Brasil, se a quantidade de notícias amenas fosse colocada em discussão, era provável que fosse aprovado um percentual superior, vide a opção por extremos como no caso da tolerância zero aos motoristas que consomem bebidas alcoólicas. Aliás, por que não 100% de boas notícias?

Durante os governos militares, o jornal Estado de S. Paulo chegou a publicar receitas de bolo e trechos dos Lusíadas de Camões no espaço de matérias censuradas. Era o jeitinho jocoso e brasileiro de achar notícias positivas. Agora, imagine essa lei romena aplicada aqui em um dia ruim. Guerra do tráfico, mortes no trânsito, terremoto na Ásia. Isso sem falar de operações da Polícia Federal que os políticos envolvidos acharão negativas - até já houve tentativa de amordaçar a divulgação delas. Haja Nega Maluca. Ainda bem que a epopéia portuguesa tem 1.102 estrofes.

Outra estratégia viável é adotar o padrão do telejornalismo. Depois de mostrar as mazelas do mundo como uma realidade disseminada, para poder se desejar boa noite, encerra-se com uma reportagem mais agradável. O exemplo típico é o nascimento de um bebê panda. O problema aqui é a raridade do fato. Então, propõe-se uma série sobre o filhote: a primeira mamada, o primeiro banho, a primeira ida ao banheiro, etc.

O meio a meio romeno talvez deva exigir da imprensa de lá atitudes mais drásticas. Os programas precisam denunciar a restrição à liberdade de expressão durante metade do tempo. Depois, use-se a mudez como brado, a ausência de sons e imagens como protesto. A receita está nos primeiros versos do poema-canção Metade de Oswaldo Montenegro. "Que a força do medo que tenho / não me impeça de ver o que anseio / que a morte de tudo o que acredito / não me tape os ouvidos e a boca / pois metade de mim é o que eu grito / mas a outra metade é silêncio."

* Publicado em A Razão, 08 de julho, em O Nacional, 14 de julho, no Jornal VS, 22 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 24 de agosto, e no Jornal NH, 16 de setembro de 2008.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A melhor vacina

A vacina da febre amarela não imuniza contra a violência no trânsito. A frase é absurda, mas algo semelhante se encontra afixado em postos de saúde substituindo "violência no trânsito" por "dengue". O esclarecimento sobre as doenças pode parecer surreal, porém o equívoco se dá porque as duas enfermidades são transmitidas por mosquitos. O receio de contrair as moléstias e estar sujeito ao risco de mortalidade faz com que as pessoas acreditem que a cobertura contra um vírus sirva para o outro. Quando a vida está em perigo, buscam-se soluções.

Nesse ponto entra a violência no trânsito. O brasileiro, que tanto quer proteger sua saúde, é nada prevenido quando se trata de trafegar com veículos automotores. Esse contra-senso pode ser verificado nas estatísticas de cada "epidemia". O estado do Rio de Janeiro, com 15,4 milhões de habitantes até o último dia 25, havia registrado 142 mortes causadas pela dengue em 2008. No Rio Grande do Sul, onde a população é um terço menor e a doença não é endêmica, de acordo com o Mapa da Violência de 2008 dos Ministérios da Saúde e da Justiça, ocorrem 165,5 óbitos por acidentes de transporte em média a cada mês. Os cartazes nos postos de saúde são indicativos de que há muito medo da dengue, enquanto os números do trânsito apontam para uma sociedade imprudente.

Aproveitando o temor existente, algumas medidas de combate ao Aedes aegypti até poderiam ser adaptadas para aplacar a selvageria ao volante. O Ministério da Saúde pede que pneus velhos sejam entregues à limpeza urbana. Nos veículos, da mesma forma, lugar de rodado careca é no lixo. Para evitar acúmulo de água e proliferação de larvas, vasilhames vazios devem ficar de cabeça para baixo. E antes de dirigir não esvazie garrafas de bebidas alcoólicas. Quanto a plantas e jardins, para a proteção contra o mosquito, recomenda-se o uso de areia nos pratinhos dos vasos. Já a ferocidade nas vias públicas também pode resultar na utilização de terra. Para selar a sepultura da vítima.

Se na luta contra a dengue tomar todas as precauções é necessário, em relação à violência no trânsito é imprescindível. Para ambos os casos, a melhor vacina ainda é a prevenção. Ela pode imunizar contra muita dor e sofrimento.

* Publicado no Diário de Canoas, 02 de julho, em O Informativo do Vale, 07 de julho, e na Gazeta do Sul, 08 de julho de 2008.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Retrato de um cavalo urbano

Porto Alegre aprovou um programa de redução gradativa de veículos de tração animal que estabelece em oito anos o fim desse meio de transporte. No século 21, as carroças ainda ocupam espaços nas vias públicas não só da capital, mas em todo o Rio Grande do Sul. Elas sobrevivem devido ao papel econômico que desempenham. Nessa situação que envolve veículo, homem e animal, a presença do cavalo em meio à vida urbana é um dos pontos mais polêmicos da questão.

Eqüinos vivem em média de 25 a 30 anos. Há animais trafegando que ultrapassaram décadas tão distintas quanto os anos 80 e 90 e a atual. Imagine um cavalo que no início puxava uma carroça de frutas e verduras, rumando para as vilas e bairros onde esses produtos eram vendidos. Às vezes, até fazia fretes. Atividades um tanto mais respeitadas se comparadas a hoje, em que na maior parte das vezes só transporta lixo. Restos catados por aí.

Ele pode ter tido muitos donos. Quando era novo e saudável valia o equivalente a uns R$ 1 mil. Agora, velho, magro e doente, não custa mais do que R$ 100,00. Por vezes, se o proprietário se descuidava, era furtado. Na última vez, foi levado enquanto pastava nas margens de um arroio que também serve de esgoto para a cidade.

Seus problemas de saúde começaram devido à dificuldade de acesso a um tratamento veterinário. Ocorrências médicas se repetiram como lesões nas patas e tendinites, ferimentos causados por maus-tratos e verminoses. Resultados de carroças construídas irregularmente, com pneus gastos e correias improvisadas, e de comer em qualquer lugar, qualquer coisa.

Morou em várias localidades da região. Algumas vezes, teve registro e até placas. Sonhou com exames veterinários anuais, com carroças que atendessem as normas técnicas e com condutores gentis. No momento, é visto como entrave nas ruas de maior trânsito e fator de aumento no congestionamento.

Quase balzaquiano, pode-se dizer que esse animal imaginado está à beira da morte. No entanto, a espécie a qual pertence está cada dia mais viva na nossa realidade. É necessário administrar a sua presença no meio urbano e resolver a sua situação sanitária precária. Acima de tudo, é preciso dar respostas às carências sociais dos seus donos. Proibidos ou não, todos fazem parte das nossas cidades.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 30 de junho, e em O Correio de Cachoeira do Sul, 02 de julho de 2008.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Cuecão para a moral

O frio chegou ao estado. Para ajudar aqueles que estão abaixo da linha de pobreza a enfrentar as baixas temperaturas mais uma vez está lançada a campanha do agasalho. Usando de um trocadilho antigo, verifica-se um contraste com o calor dos acontecimentos que envolvem o governo. Porém, apesar de um clima político superaquecido, os fatos dos quais se toma conhecimento são de arrepiar pêlos, enregelar almas e renguear cuscos. Logo, parece ser também necessário algum tipo de solidariedade para atender aqueles que não trajam os valores morais e éticos socialmente aceitos.

Colocar em prática essa empreitada é urgente porque tal qual a temperatura o nível do debate baixou muito. Pode-se dizer que virou uma briga de lavadeira, mas a associação dessa categoria profissional por certo protestará contra a comparação. É preciso que todos se dispam de ressentimento, arrogância, pretensão, egocentrismo e vaidade para que se possa lavar a roupa (e a ficha) suja de alguns. Esse é um trabalho para ser feito de mãos limpas, longe da influência da máquina pública e dos secadores de plantão.

Essa campanha deve diferenciar-se em relação às habituais arrecadações de agasalho em que basta que se contribua com alguma roupa velha. Na procura por princípios o importante é a busca por renovação e atualização de idéias. Pode-se ainda tentar resgatar conceitos que até parecem ultrapassados e fora de moda tais como honestidade, dignidade, compromisso, caráter e respeito. Ou seja, tudo que não deve ser perecível.

Não se trata de “pregar moral de cueca”, até porque muitos estão desnudos mesmo, precisando vestir no mínimo as roupas de baixo para acabar com a pouca vergonha. É necessário então um primeiro movimento para dar abrigo à ética. Os postos de recepção das doações devem ser colocados em órgãos de todos os poderes e de todas as esferas. Na administração direta e indireta. Nos serviços delegados e concedidos. Nos terceirizados e, inclusive, na iniciativa privada. Ninguém pode ficar de fora.

A rainha está nua. Do olhar infantil à miopia senil, quase ninguém mais percebe roupa nova ou novo jeito de governar. É preciso reunir valores que restaurem aquele sentimento de orgulho que hoje está tão surrado, amassado, puído, remendado, desbotado, enxovalhado, amarrotado, sem botões e com furo nos fundilhos. Aquela sensação de que aqui a política era diferente. De que podíamos tirar o chapéu para todos os nossos representantes públicos.

Essa é uma touca que deveria servir em todo mundo. É hora de vestir a pilcha da constância e da virtude, expressão da tradição, da cultura e da identidade própria do gaúcho. Para sobreviver a uma era glacial ética, chegou o momento de nós começarmos a ditar moral de cueca, cuecão, bombacha, pala, etc.

* Publicado em O Informativo do Vale, 19 de junho, no Diário de Canoas, 21 de junho, na Gazeta do Sul, 24 de junho, no Diário Popular de Pelotas, 25 de junho, e no Jornal VS, 19 de julho de 2008.

terça-feira, 17 de junho de 2008

De ninguém, mas para todos

O Tribunal Superior Eleitoral decidiu não regulamentar a propaganda eleitoral na internet. Essa deliberação passou um pouco despercebida se comparada à divulgação que foi dado à liberação para concorrer dos candidatos com "ficha suja". No entanto, ao contrário da determinação mais comentada, essa resolução precisa ser festejada. É uma vitória da liberdade de expressão em um contexto jurídico no qual o cerceamento é a regra. Vide o tratamento dado às demais mídias nos períodos de eleições.

Esse episódio demonstrou que a internet precisa ser mais compreendida antes que leis inócuas sejam feitas. Um dos ministros que era a favor de restrições ao uso da rede mundial de computadores afirmou que vamos ter uma terra de ninguém. Em inglês, essa expressão é traduzida como no man's land, termo empregado para designar um território sob disputa que não pertence a qualquer das partes. Pois é exatamente isso que todos esperam de um pleito eleitoral antes do resultado das urnas.

A internet foi desenvolvida com a finalidade de garantir que o conhecimento e a informação tivessem ao menos um sítio que jamais seria subjugado. Criou-se uma outra civilização, a do ciberespaço. Exagerando, ela poderia ser alinhada a lugares imaginários como o Reino das Águas Claras de Monteiro Lobato e o País das Maravilhas de Lewis Caroll. Ou, no melhor exemplo, a Pasárgada de Manuel Bandeira, onde tem tudo. Regulamentar algo assim é tão viável como seria dizer ao poeta que lá ele não pode ter a mulher que quer na cama que escolher.

Diferente dos meios de comunicação tradicionais, a internet não tem dono. Trata-se de uma jurisdição livre e gratuita na qual o poder econômico ou a amizade do rei não garantem qualquer vantagem para quem os detêm. Por tudo isso, ela é um lugar para todos.

Cabe aqui ainda ressaltar a lucidez do ministro Carlos Ayres Britto, presidente da corte eleitoral, que de forma simples sentenciou: "O Direito não tem como dar conta desse espaço. É um espaço que não nos cabe ocupar. Deixemos os internautas em paz". De resto, toda eleição deveria ser assim. Paz e liberdade para se possa escolher o que se quer ter. E vamos embora à busca da Pasárgada.

* Publicado em Zero Hora, 17 de junho de 2008.

sábado, 14 de junho de 2008

Estátua, viva!

Nunca se ouviu falar em depredação de estátua viva, essa atividade desenvolvida por atores que angariam contribuições ficando imóveis.

Em compensação, os verdadeiros monumentos estão sendo barbarizados pelos que, na falta de algo útil para fazer, expressam a sua ociosidade destruindo o patrimônio comum.

A covardia é óbvia. Enquanto o artista que se faz de escultura se encontra em locais com platéia e pode responder à ação indesejada com um cascudo, as figuras históricas às quais se prestou o tributo em pedra ou metal são atacadas às escondidas e, inanimadas, sofrem em silêncio.

As estátuas vivas eram uma das características das festividades medievais e renascentistas, tais como as chegadas de reis e governantes nas cidades. No início do século XX, Olga Desmond, uma bailarina alemã, fazia imitações nuas de obras de arte clássicas. Em 1945, uma estátua viva apareceu em uma cena do filme francês Les enfants du Paradis.

E nos anos 60, uma dupla de artistas de Londres, Gilbert e George, incluíram-se entre os pioneiros dessa atividade. Ou seja, nada de novo na vida urbana.

A partir dessas observações, podem-se ter algumas idéias divertidas para embargar o vil recreio dos que danificam os bens públicos.

A primeira delas seria empregar os intérpretes de estátuas vivas para substituir os monumentos. O problema seria como realizar um concurso. Bons candidatos entregariam as avaliações em branco, pois não se mexeriam para responder as questões. Aprovam-se todos?

Aperfeiçoando o conceito, ao invés de fazer uma seleção aberta para atores, seria realizada uma convocação secreta de seguranças para a tarefa. Imaginem o vândalo se preparando para operar a selvageria e sendo surpreendido pela reação enérgica da alegoria que ele imaginava inerte. Mais do que uma pegadinha de programa de tevê, isso seria redentor para todos que respeitam esse patrimônio.

Não se faria isso em todos os lugares, bastariam essas histórias circularem para atingir a ousadia dos mais medrosos. Porém nada superaria em resultado uma medida provisória do Todo-Poderoso que realmente concedesse vida às estátuas.

Imagine o fanfarrão pronto para atacar um monumento eqüestre e, de repente, o capuz do seu casaco fica pesado.

Ele olha para cima, sentindo um cheiro ruim, e a segunda carga explode contra o seu rosto. O cavaleiro imortalizado, do alto do garanhão, sentencia: Sai fedendo daqui guri!

Sabe-se que essas sugestões não são viáveis, nem possíveis. Elas servem para chamar atenção do quão pusilânime são os atentados contra os monumentos das cidades. Há a necessidade urgente da conservação desse patrimônio histórico.

É preciso de alguma forma dar uma vida protegida para nossas estátuas. Isso já mereceria um viva.

* Publicado no Diário de Canoas, 14 de junho, em O Informativo do Vale, 16 de junho, no Jornal VS, 30 de junho, e em A Razão, 31 de julho de 2008.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Língua de sinais (A linguagem dos semáforos)

Se a comunicação oral não pode ser utilizada, caso dos deficientes auditivos, a solução é o emprego de uma linguagem não-verbal, baseada em sinais feitos com as mãos. Atualmente, não só eles têm feito uso desse tipo de recurso. Pelos menos dois grupos sociais apelam cada vez mais para gestos como forma de se fazerem compreender, apesar de poderem ouvir e falar. São motoristas e pedintes quando se confrontam nos semáforos fechados.

Para evitar a coação dos esmoleiros, condutores têm preferido manter levantados os vidros do carro. Com o ar-condicionado, não precisam abrir as janelas. Com o som alto, ficam surdos à mendicância crescente nas sinaleiras. Mas quem está dirigindo, por mais que deseje, não pode evitar enxergar a pessoa que está no lado de fora. Começa então um diálogo de movimentos e expressões corporais. Chega o pedinte, levantando a camisa para mostrar que não está armado. O motorista sorri aliviado. O que mendiga faz um sinal com os dedos como se segurasse a moeda que quer. A pessoa no volante acena um não com a cabeça. O esmoleiro apela para fome. Com uma mão circulando sobre o estômago e a outra levada em direção à boca, ele indica que o dinheiro é para comida. Enquanto finge procurar alguma moeda dentro do carro, o condutor ergue as mãos abertas e espalmadas para cima como quem as tira de bolsos vazios. Ufa! Luz verde. O automóvel parte para a próxima sinaleira onde essa coreografia constrangedora se repetirá.

Existem variações para esse encontro mais belicosas. De pedintes, alguns indivíduos passam a mandantes, exigindo dinheiro com pedras ou pregos na mão, ameaçando quebrar vidros ou riscar a lataria do veículo. Se na situação anterior, o mote era o constrangimento, nesse caso é a intimidação que impera. De forma pacífica ou agressiva, quem deseja algo em quase todas as oportunidades se faz entender.

Essa é a linguagem dos semáforos. Nos cruzamentos onde os que pouco tem se encontram com os detentores de posses, ela está presente. No atual cenário internacional, apenas o ponto de vista se inverteu. Quem sempre deu esmolas descobriu que há pessoas famintas no mundo. Esfrega a mão na barriga, protestando contra os biocombustíveis. Alimentos estariam sendo usados para que motores funcionem. Já os que recebiam as moedas mostram as mãos sem dinheiro, culpando a filantropia desnecessária dos subsídios agrícolas europeus e norte-americanos como causa da fome global.

Como ainda não foram mostradas pedras ou pregos, o sinal é de atenção. Sempre que sobrevivência e interesses estão em disputa, as linguagens do constrangimento e da intimidação são universais. Ali na esquina ou em Roma, onde os líderes de 193 países estiveram reunidos para discutir a crise mundial de alimentos e combustíveis.

* Publicado em O Informativo do Vale, 03 de junho, no Diário de Canoas, 04 de junho, em A Notícia de Joinville, 05 de junho, no Agora de Rio Grande, 07 de junho, na Gazeta do Sul, 10 de junho, e no Jornal VS, 16 de junho de 2008.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

As entrevistas e a média

Os noticiários concederam espaços acima da média para as duas principais polêmicas do ano: a morte de Isabella Nardoni e o envolvimento de Ronaldo Nazário com travestis. Entre as incontáveis entrevistas realizadas, quatro delas, pela exclusividade e pela semelhança de objetivos, devem ser destacadas.

No drama de Isabella, o programa Fantástico entrevistou o pai e a madrasta indiciados pelo homicídio e a mãe da menina. No dia 20 de abril foi ao ar o encontro de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá com o repórter Valmir Salaro. E, no último Dia das Mães, Ana Carolina de Oliveira desabafou com a jornalista Patrícia Poeta a perda da filha.

O que se viu foi cada um deles tentando criar para si uma boa imagem junto à opinião nacional. Se tomadas como verdades, as três falas nos levam à conclusão que todos ali foram e são perfeitos nos papéis familiares que desempenham. Até a mãe, quase tão vítima quanto a menina, aproveitou a oportunidade para tornar os monstros ainda mais assustadores do que já são. Isso aconteceu sem que houvesse culpa dos entrevistadores. Salaro e Patrícia realizaram todas as perguntas esperadas. Cumpriram a função da mídia de intermediar fatos e público. Por óbvio, devido à excelência dos profissionais e ao padrão de qualidade da emissora, não cabia a eles agirem como membros da Santa Inquisição da Idade Média. Restou para a assistência buscar meios de interpretar o que de real aquelas entrevistas mostraram. O exercício de compreensão do que se passa na alma desses personagens nos tornou um pouco médiuns, procurando psicografar o que estava entremeado nas expressões faciais e gestos corporais.

Quase tudo que foi dito vale para o Ronaldo Fenômeno. Com Patrícia Poeta no dia 4 e Ana Maria Braga no dia 13, ele tentou redimir sua situação, sendo agradável e respondendo a todas as questões com a sua versão. A diferença é que a repercussão do que disse foi apenas medíocre se comparada com a da tragédia da menina Isabella, tanto pela relevância do assunto como pela média da audiência. O que houve em comum mesmo entre os dois episódios é que as entrevistas exclusivas de Nardoni, Jatobá, Oliveira e Nazário foram buscas de aprovação. Eles procuraram tirar o máximo proveito da situação, mas não atingiram a média.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 30 de maio de 2008.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

O último nigiri (Malthus e a guerra pelo último sushi)

Como diria o sushiman, vamos por peças. Nigirizushi é um prato japonês feito à mão, no qual um bolinho de arroz temperado com molho de vinagre, açúcar e sal é coberto com uma fatia de peixe cru (salmão ou atum, por exemplo). Feito com um cereal trivial e uma iguaria sofisticada, o nigiri ou apenas sushi, como também é chamado, pode ser visto como símbolo de polêmicas atuais da política internacional: segurança alimentar, biocombustíveis e devastação ambiental.

A escassez de grãos como o arroz tem gerado inflação, revolta em países miseráveis como Haiti e Bangladesh e possibilidade de racionamentos. Nos Estados Unidos, limitou-se a venda do cereal. Lá ainda há a ameaça de extinção do salmão por causa do aquecimento global - temperaturas altas matam organismos que servem de refeição para o peixe. A população dele foi reduzida a 6% do total de 2003. Pobres ou ricos, todos precisam comer.

Albert Einstein (1879-1955), físico alemão, dizia não saber como seria a Terceira Guerra Mundial, mas que podia dizer como seria a Quarta: com paus e pedras. Ele só não previu o motivo. A insuficiência de mantimentos no início do século XXI desponta como razão para confrontos globais, diferente do que se pensava nos anos 70, quando o petróleo era a causa das crises, ou do que se imaginava na década de 90, quando a poluição das águas era o maior problema previsto.

Contudo, tanto o ouro negro como a fonte da vida são fatores que causam de forma direta a carência enfrentada. De um lado, grãos que fazem falta na mesa viram combustíveis alternativos aos de origem fóssil. Do outro, a degradação de aqüíferos atinge a produção agropecuária. Coincidência: a rizicultura necessita de água em abundância e o salmão não vive fora dela.

Thomas Malthus (1766-1834), economista britânico, foi o primeiro a antever que a privação de meios de subsistência seria a equação do futuro ao verificar que as populações cresciam de forma geométrica e o suprimento do sustento delas aumentava apenas aritmeticamente. Por muito tempo isso não foi real. O desenvolvimento tecnológico rechaçou essa hipótese. Há alguns anos se voltou a falar nisso, agora sob o rótulo de "neomalthusianismo". Outra vez, questões que envolvem alimentos, energia e preservação estão presentes. Incrementos obtidos pela ciência para otimizar cultivos danificam clima e solo, reduzindo os efeitos da tecnologia.

Diz o provérbio que em casa onde falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. É o que tem ocorrido em nível mundial quando se fala em segurança alimentar e biocombustíveis. Enquanto isso, a inflação sobe, a comida falta e a devastação ambiental continua. Soluções precisam ser encontradas com urgência ou logo teremos a guerra definitiva. E ela será com pauzinhos pelo último nigirizushi.

* Publicado em O Globo Online, 21 de maio, em A Notícia de Joinville, 22 de maio, no Diário de Canoas, 23 de maio, e na Gazeta do Sul, 26 de maio de 2008.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Acabaram com a piada

Deus criou a Terra e distribuiu adversidades por todo globo. Contudo, Ele reservou ao Brasil um clima propício, uma natureza exuberante, homens cordiais e mulheres lindas. Um anjo ao ver este lugar maravilhoso perguntou: Senhor, por que esse País é assim e os demais cheios de problemas? Ao que o Todo Poderoso respondeu: Espera para ver o povinho que vou colocar lá!

Essa anedota devia ter uns quinhentos anos quando no fim de abril uma agência internacional de avaliação de risco classificou o Brasil como "investment grade", sinalizando para os mercados estrangeiros que aplicar recursos com segurança aqui é possível. Lula traduziu essa declaração dizendo que agora somos considerados um País sério. Ou seja, esse povinho é merecedor da confiança mundial. "Le Brésil n'est pas un pays sérieux", frase imputada a De Gaulle, perdeu o sentido. E a pilhéria atribuída ao Criador não tem mais o espírito original.

Além disso, não foi só essa parte da galhofa que ficou sem graça. No último aniversário da chegada de Cabral fomos "presenteados" com um terremoto (sem vítimas, amém) com 5,2 graus na escala Richter. O tremor atingiu São Paulo, Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Seu epicentro foi registrado no mar a 270km da capital paulista. Na seqüência, em maio, um ciclone extratropical provocou destruição a mais de 100km/h no sul do País. Fenômenos naturais adversos também fazem parte da nossa realidade.

O curioso é que o Peru havia sido o país mais recente a ter o reconhecimento de seriedade pelos investidores financeiros. Esse nosso vizinho também tem um histórico de terremotos superior. O último em 2007 chegou a 8 graus. Após o tremor principal, alertas de tsunami foram emitidos ao Peru e ao Chile (outro dos países sérios). Será que é a natureza convulsionada que amadurece as nações?

Já as riquezas nativas do Brasil estão nas manchetes diárias pelos motivos mais miseráveis. Desmatamento, tráfico de animais silvestres, queimadas, ameaça à biodiversidade, contaminação das águas, mortandade de peixes. Até uma crise envolvendo indígenas e fazendeiros pelo "direito" de devastar parte da Amazônia na reserva Raposa Serra do Sol em Roraima está em pauta. A belicosidade é outra das características encontradas entre os países respeitados na economia mundial a começar pelos Estados Unidos da América.

Acabaram com a piada. E daí? Outras surgem sem precisar de intervenção divina. No País das dançarinas de funk com quadris de três dígitos, o Fenômeno dos gramados, famoso por suas namoradas de placa, confundiu três produtos piratas com material legítimo. Créu nele. Após uma noitada a quatro com espelhos e cama redonda, começou o dia envolvido em um conflito, fazendo troca-troca de acusações com travestis em uma delegacia. Fala sério!

* Publicado no Diário de Canoas, 14 de maio, na Gazeta do Sul, 15 de maio, e no Agora de Rio Grande, 16 de maio, e no Diário Popular de Pelotas, 19 de maio de 2008.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A Lugo o que é de Lugo

Fernando Lugo, presidente eleito do Paraguai, quer discutir o preço da energia da usina hidrelétrica de Itaipu pago pelo Brasil. Recordando, a usina foi construída no rio Paraná, na fronteira entre os dois países. Pelos termos do tratado binacional, os brasileiros ficaram responsáveis pelos recursos financeiros que viabilizaram a obra. Isso se deu por meio da obtenção de empréstimos em instituições financeiras privadas e bancos estatais estrangeiros. Ou seja, uma parte da nossa famosa dívida externa, já sanada, mas que só terminará de ser paga em 2023.

Ficou decidido que a energia gerada pela usina seria dividida em partes iguais entre os dois sócios. Porém o Paraguai utiliza apenas 5% da dele, o suficiente para suprir 95% de sua demanda. Logo, o Brasil fica com o resto e paga por isso. Lugo questiona a legitimidade do atual valor que os paraguaios recebem. Sob o ponto de vista legal, sabe-se que pouco pode ser contestado. A solução jurídica contratual é considerada uma das mais importantes contribuições do jurista Miguel Reale (1910-2006). O debate se encontra na esfera da validade ética desse acordo nos dias de hoje. Considerando o poder econômico da cada nação e a importância disso no campo das relações internacionais do Mercosul, o preço em vigor é socialmente justo? É aceitável que a tarifa seja paga pelo custo e não pelo valor de mercado? Tudo que é legal é também legítimo?

Essa tem sido uma polêmica recorrente toda vez que novos governos em quaisquer latitudes encontram contratos que não atendem aos seus interesses ideológicos. Não sendo possível objetar a legalidade na maior parte das vezes, tudo recaí nessa retórica que busca desmoralizar a autenticidade do que foi outrora firmado. No presente caso, é até possível saudar essa mudança. Quem diria que o país da "garantía soy yo" estaria protestando contra a legitimidade de algo.

Neste pleito, o futuro presidente da República do Paraguai deve estar contando com o histórico do governo Lula que cedeu no caso do gás boliviano e no perdão de dívidas de alguns países africanos. No entanto, ainda que improvável, um encontro de contas deveria ser proposto para resolver a questão. Se a energia deve ser remunerada de forma correta, também é preciso calcular o débito paraguaio pela construção da maior hidrelétrica do mundo em geração de energia.

Passada a régua, faça-se o que Jesus propôs ao confirmar para um grupo de fariseus e herodianos a licitude dos impostos cobrados por Roma, indicando que as moedas imperiais deveriam ser entregues para César porque lhe pertenciam. Como ex-bispo católico, o paraguaio deve conhecer bem esses versículos. Mandem a fatura com os dois valores: o que for justo pagarmos e o que é certo eles nos devolverem. Que seja dado logo a Lugo tudo o que for de Lugo.

* Publicado no Diário Catarinense, 06 de maio, e no Jornal VS, 13 de maio de 2008.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Meninas

Em um pequeno vilarejo na Índia, há quase dois meses nasceu Lali, uma menina com duplicação facial. Ela tem dois pares de olhos, dois narizes e duas bocas. Para os vizinhos, a filha de um lavrador seria a reencarnação de uma deusa hindu. Eles fazem oferendas e querem construir um templo. O pai está cansado. Para ele, Lali é como qualquer outra criança.

No interior de São Paulo, dias depois da chegada de Lali ao mundo, uma portadora da síndrome de Down deu à luz a Valentina, uma menina saudável cujo pai é um rapaz com atraso mental. Algo raro. Poucas mulheres com Down se casam. Funcionários do cartório local se recusaram a registrar a filiação completa da criança porque o rapaz seria incapaz de declarar a paternidade por conta própria.

Há seis anos nascia Isabella. Ela morreu uma semana após o início da vida de Valentina. As características criminosas do óbito têm ocupado fartos espaços na imprensa. Os principais suspeitos são o pai e a madrasta da menina. Ela teria sido agredida por eles e atirada do apartamento localizado no sexto andar de um prédio em São Paulo.

Faz 24 anos que Vanessa veio à luz no Ceará. Surda de nascença, ela desenvolveu a fala e aprendeu a linguagem de sinais com apoio especializado e maternal. Há alguns dias ficou em segundo lugar no concurso de Miss Brasil. Situação inédita. Quando respondeu a perguntas dos jurados, Vanessa com o auxílio de uma intérprete emocionou o país com sua simpatia e expressividade.

Maria Gabriela nasceu com síndrome de Down há 27 anos. Em janeiro passado, descobriu que estava grávida de seis meses. Sua família e a do pai da criança comemoraram a chegada do bebê antes mesmo de saberem que ele seria saudável. A criança gerada é a menina Valentina, também filha de um rapaz com atraso mental, cuja paternidade um cartório do interior paulista não quis registrar.

Como dizia o poeta romano Terêncio, no século II a.C., "nada do que é humano me é estranho". Meninas como a deusa Lali, a saudável Valentina, o anjo Isabella, a musa Vanessa e a mamãe Maria Gabriela sempre serão razões de curiosidade. Logo, são do interesse da mídia e do público. Mas não se pode esquecer que elas, como quaisquer outras entre bilhões, só desejam ser felizes. Nem todas conseguem. No caso de Isabella Nardoni, não haverá mais essa chance.

* Publicado no Diário de Canoas, 30 de abril, na Gazeta do Sul, 1º de maio, no Diário Popular de Pelotas, 05 de maio, e em A Razão, 12 de maio de 2008.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A dona dos jogos

Qualificar o esporte como entorpecente da vontade popular é algo antiquado. Na origem, o circus até fazia parte das estratégias dos governos para desviar a atenção do povo. Hoje o entretenimento esportivo é muito mais uma indústria do qualquer outra coisa. Aliás, como quase tudo.

Por causa da situação do Tibete e sua relação com a China - onde será realizado o maior evento esportivo do ano - há quem acredite em boicote aos Jogos Olímpicos por meio da não-participação de países ou de uma mobilização contra a cobertura realizada pelos meios de comunicação. São idéias mofadas que alguns ainda insistem em ventilar.

No conflito entre o governo chinês e os tibetanos, não se duvida que a razão esteja ao lado do Dalai Lama e de seus astros-propaganda, Sharon Stone, Richard Gere e grande elenco. Neste artigo não se debate isso. Mas lembre-se, esse problema não é recente, e a escolha da capital chinesa como sede da competição também não.

Considerando que é inadmissível a vinculação do sucesso esportivo a ideologias (sejam quais forem) como forma de propagá-las, o contrário deve ser igualmente inaceitável. Ou seja, não se pode tolerar a utilização de posicionamentos políticos para promover o fracasso do esporte, por mais relevante que seja a causa.

Não prestigiar os Jogos de Beijing (ou Pequim, como queiram) significa praticar uma agressão contra um processo econômico que rende bilhões de dólares, euros e, inclusive, reais, gerando empregos e oportunidades em todo o globo. Representa optar pela ignorância em relação a bons exemplos que encantam crianças e estimulam atitudes saudáveis em todas as gerações. É colocar-se em oposição à possibilidade de harmonia entre os povos que o esporte proporciona.

Se a República Popular da China ofende os direitos humanos no Tibete, boicotem os produtos e a cultura dela. Não comprem as roupas, os aparelhos eletrônicos e as bugigangas de 1,99 que ela exporta. Quem sabe evitem até a pólvora, por ter sido descoberta lá. Não leiam A Arte da Guerra, nem citem Confúcio. Reneguem até os clichês se desejarem radicalizar: comida chinesa, lavanderia e pastelaria. Só não tentem atingir o movimento olímpico. Os Jogos apenas estarão em solo chinês. A verdadeira dona deles é a humanidade.

* Publicado em O Informativo do Vale, 21 de abril, na Gazeta do Sul e em O Correio de Cachoeira do Sul, 23 de abril, no Diário de Canoas, 28 de maio, em A Razão, 16 de junho, e no Jornal NH, 11 de agosto de 2008.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Protagonismo da perícia

A tragédia que vitimou Isabella de Oliveira Nardoni, no último dia 29, em São Paulo, colocou em evidência a atividade pericial. Independente dos resultados a serem alcançados pelos Institutos de Criminalística e Médico-Legal da capital paulista, a relevância da perícia já está demonstrada pela expectativa que gerou em todo o país. Formou-se o consenso de que os peritos são fundamentais para o esclarecimento dos fatos que tiveram como conseqüência o óbito da menina de cinco anos que foi jogada do apartamento do pai.

A cobertura jornalística do episódio se fixou no desenvolvimento dos exames periciais. Profissionais da imprensa e veículos de comunicação empenham seus recursos na caça das notícias mais recentes sobre os laudos realizados e na reprodução mais compreensível da ciência utilizada pelos expertos. Por vezes, a velocidade que a imprensa exige contrasta com o tempo que os peritos necessitam para chegar a conclusões. No entanto, esse processo é semelhante ao dos jornalistas nas reportagens especiais. Levam-se dias, semanas ou até meses juntando peças. Depois, elas são encaixadas em grupos. Na seqüência, buscam-se os detalhes que vão unir cada pedaço montado. Isso é o mais complicado. O que se quer está lá, mas se demora a enxergar. De repente, de tanto debruçar-se sobre o material, aparecem os vínculos. Trabalho concluído. É assim com todos os grandes quebra-cabeças como é o caso Isabella Nardoni.

A investigação da cena do crime deixou de ser um seriado policial americano e se tornou um documentário diário na mídia nacional. O poder judiciário, o ministério público e a polícia se encontram também na condição de espectadores, apenas privilegiados por terem mais acesso a informações do que o restante da platéia. Sob a luz dos refletores, sem perder a discrição exigida pela profissão, os peritos realizam os seus papéis de sempre: a constatação e a análise completa dos eventos e a interpretação técnico-científica dos vestígios encontrados no local da morte. A diferença é que a repercussão de um drama como o que levou a vida de Isabella faz com que tudo isso se torne público.

Os laudos periciais serão as únicas peças do inquérito policial que seguirão até o final do processo judicial. Essa constatação comprova a permanente dependência que delegados, defensores, promotores e juízes possuem em relação ao trabalho dos profissionais da criminalística e da medicina legal. Todos eles necessitam da perícia para exercerem com qualidade os seus ofícios.

Essas são situações cotidianas e servem para que se entenda porque os peritos são os protagonistas do momento. Esses profissionais precisam mesmo ser valorizados de acordo com a relevância que tem. Que a nossa sociedade não precise da morte chocante de outras crianças para compreender essa importância de forma definitiva.

* Publicada em O Informativo do Vale e no Jornal VS, 17 de abril, no Diário de Canoas, 22 de abril, em A Razão, 29 de abril, no Informe ABC - Informativo da Associação Brasileira de Criminalística, Março/Abril, e no Jornal NH, 23 de junho de 2008.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Surpresas de Páscoa

O fato da Páscoa ter sido tão cedo esse ano talvez permita que sejam recuperadas algumas reflexões que o período poderia ter ensejado, mas a precipitação de outros fatos importantes impediu. Esse artigo é um exemplo disso.

Nenhum feriado que agregue caráter comercial é mais peculiar que esse. Se não fosse a publicidade, seria estranha a união de coelhos, ovos e chocolate. Só a imaginação infantil para aceitar como natural essa fantasia.

No entanto, isso ficou mais bizarro quando fabricantes e marqueteiros conseguiram suplantar os limites dessa fabulação com a criação do brinde surpresa. No início, os ovos, quando recheados, traziam apenas mais chocolate na forma de bombons. Um dia alguém resolveu incluir aviõezinhos, carrinhos e bonequinhos. Quem convive com crianças conhece o poder dessa história. Elas exigem a compra, ficam doidas pelo brinquedo, mas não comem a guloseima.

Adotando a receita das surpresas de Páscoa com uma pitada de devaneio como ingrediente, poderiam ser especuladas quais maravilhas alguns adultos desejariam ter encontrado dentro dos ovos de chocolate. Que quimeras os teriam feito perder a razão e voltar a ser infantes.

O papa Bento XVI deve ter procurado sua cesta com a esperança de encontrar um novo pecado capital em um ovinho: a propaganda enganosa, quem sabe. Já outro grande líder espiritual, o Dalai Lama, após 49 anos de exílio, ainda deseja voltar para um Tibete livre do domínio chinês. O chocolate ele prefere deixar para os famintos, seja um dos bilhões da Índia, aonde vive, ou da China, aonde gostaria de viver.

Hillary Clinton ou Barack Obama e John McCain, candidatos à presidência dos Estados Unidos, ainda vão seguir até novembro ambicionando o salão oval da Casa Branca e todo poder que há lá dentro. No Brasil, o presidente Lula parece querer o prêmio do terceiro mandato, apesar de afirmar que desse mato não sai coelho.

Entre as celebridades internacionais que têm tudo, Paris Hilton precisa de uma calcinha que ainda não foi fotografada. Britney Spears se satisfaz em fazer mais um filho cuja guarda por fim perderá na justiça.

Eu? Já me contento com a publicação desse artigo. E você, o que esperava do coelhinho nessa Páscoa?

* Publicado no Diário de Canoas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 10 de abril, e no Diário Popular de Pelotas, 15 de abril de 2008.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Novela americana

As telenovelas nos Estados Unidos costumam ter enredos infindáveis, permanecendo no ar durante anos, apenas renovando personagens. No Brasil, o mais parecido com isso é a Malhação da Globo. No momento, não há soap opera (como são chamadas lá) mais sensacional, emocionante e cheia de reviravoltas do que a política norte-americana.

O desenrolar eletrizante dos fatos acontece tanto entre protagonistas como também nos episódios que envolvem coadjuvantes. No cenário principal ocorre o embate entre Hillary Clinton e Barack Obama, que disputam prévia a prévia a indicação do Partido Democrata à presidência. Hillary iniciou como a estrela absoluta do espetáculo. Na seqüência, o papel e o ibope de Obama cresceram, passando a atrair todos os refletores. Esse é um script que ainda segue indefinido.

Porém, nada supera o núcleo Portelinha (é só barraco) de Nova York, onde tinha até cafetina brasileira. Primeiro, o então governador Eliot Spitzer, que fez carreira como promotor público com redes de prostituição entre seus alvos, teve flagrado seu envolvimento com meretrizes de luxo. Só lhe restou renunciar como recurso melodramático mais adequado ao padrão moralista norte-americano. Completando a trama romanesca, surge o seu vice, David Paterson, cego e negro.

Não bastaram as características pessoais inéditas do "ator". No dia seguinte à sua estréia oficial, Paterson declarou já ter sido adúltero. A sua confissão superou na originalidade até a de Bill Clinton, antigo astro dessa opereta. Além de assumir a traição, ele reconheceu que sua mulher também teve casos extraconjugais. Essa admissão ocorreu em entrevista coletiva com o casal lado a lado. E, recentemente, ele também narrou suas experiências com drogas na juventude.

A política nos Estados Unidos se consolida como uma verdadeira novela. Acompanhar os noticiários internacionais se assemelha à leitura das revistas de fofocas. São tantas situações típicas de folhetim que qualquer nova revelação que acontecer daqui para a frente é crível.

Hillary amante de Obama? Em público, brigam. Em segredo, entregam-se à paixão. John McCain, candidato à presidência pelo Partido Republicano, pai dela? Após o botox, um ficou a cara do outro. É o show que deve continuar. Que venham as cenas dos próximos capítulos desses campeões de audiência.

* Publicado em O Informativo do Vale, 31 de março, e no Diário de Canoas, 02 de abril de 2008.