quinta-feira, 29 de maio de 2008

As entrevistas e a média

Os noticiários concederam espaços acima da média para as duas principais polêmicas do ano: a morte de Isabella Nardoni e o envolvimento de Ronaldo Nazário com travestis. Entre as incontáveis entrevistas realizadas, quatro delas, pela exclusividade e pela semelhança de objetivos, devem ser destacadas.

No drama de Isabella, o programa Fantástico entrevistou o pai e a madrasta indiciados pelo homicídio e a mãe da menina. No dia 20 de abril foi ao ar o encontro de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá com o repórter Valmir Salaro. E, no último Dia das Mães, Ana Carolina de Oliveira desabafou com a jornalista Patrícia Poeta a perda da filha.

O que se viu foi cada um deles tentando criar para si uma boa imagem junto à opinião nacional. Se tomadas como verdades, as três falas nos levam à conclusão que todos ali foram e são perfeitos nos papéis familiares que desempenham. Até a mãe, quase tão vítima quanto a menina, aproveitou a oportunidade para tornar os monstros ainda mais assustadores do que já são. Isso aconteceu sem que houvesse culpa dos entrevistadores. Salaro e Patrícia realizaram todas as perguntas esperadas. Cumpriram a função da mídia de intermediar fatos e público. Por óbvio, devido à excelência dos profissionais e ao padrão de qualidade da emissora, não cabia a eles agirem como membros da Santa Inquisição da Idade Média. Restou para a assistência buscar meios de interpretar o que de real aquelas entrevistas mostraram. O exercício de compreensão do que se passa na alma desses personagens nos tornou um pouco médiuns, procurando psicografar o que estava entremeado nas expressões faciais e gestos corporais.

Quase tudo que foi dito vale para o Ronaldo Fenômeno. Com Patrícia Poeta no dia 4 e Ana Maria Braga no dia 13, ele tentou redimir sua situação, sendo agradável e respondendo a todas as questões com a sua versão. A diferença é que a repercussão do que disse foi apenas medíocre se comparada com a da tragédia da menina Isabella, tanto pela relevância do assunto como pela média da audiência. O que houve em comum mesmo entre os dois episódios é que as entrevistas exclusivas de Nardoni, Jatobá, Oliveira e Nazário foram buscas de aprovação. Eles procuraram tirar o máximo proveito da situação, mas não atingiram a média.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 30 de maio de 2008.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

O último nigiri (Malthus e a guerra pelo último sushi)

Como diria o sushiman, vamos por peças. Nigirizushi é um prato japonês feito à mão, no qual um bolinho de arroz temperado com molho de vinagre, açúcar e sal é coberto com uma fatia de peixe cru (salmão ou atum, por exemplo). Feito com um cereal trivial e uma iguaria sofisticada, o nigiri ou apenas sushi, como também é chamado, pode ser visto como símbolo de polêmicas atuais da política internacional: segurança alimentar, biocombustíveis e devastação ambiental.

A escassez de grãos como o arroz tem gerado inflação, revolta em países miseráveis como Haiti e Bangladesh e possibilidade de racionamentos. Nos Estados Unidos, limitou-se a venda do cereal. Lá ainda há a ameaça de extinção do salmão por causa do aquecimento global - temperaturas altas matam organismos que servem de refeição para o peixe. A população dele foi reduzida a 6% do total de 2003. Pobres ou ricos, todos precisam comer.

Albert Einstein (1879-1955), físico alemão, dizia não saber como seria a Terceira Guerra Mundial, mas que podia dizer como seria a Quarta: com paus e pedras. Ele só não previu o motivo. A insuficiência de mantimentos no início do século XXI desponta como razão para confrontos globais, diferente do que se pensava nos anos 70, quando o petróleo era a causa das crises, ou do que se imaginava na década de 90, quando a poluição das águas era o maior problema previsto.

Contudo, tanto o ouro negro como a fonte da vida são fatores que causam de forma direta a carência enfrentada. De um lado, grãos que fazem falta na mesa viram combustíveis alternativos aos de origem fóssil. Do outro, a degradação de aqüíferos atinge a produção agropecuária. Coincidência: a rizicultura necessita de água em abundância e o salmão não vive fora dela.

Thomas Malthus (1766-1834), economista britânico, foi o primeiro a antever que a privação de meios de subsistência seria a equação do futuro ao verificar que as populações cresciam de forma geométrica e o suprimento do sustento delas aumentava apenas aritmeticamente. Por muito tempo isso não foi real. O desenvolvimento tecnológico rechaçou essa hipótese. Há alguns anos se voltou a falar nisso, agora sob o rótulo de "neomalthusianismo". Outra vez, questões que envolvem alimentos, energia e preservação estão presentes. Incrementos obtidos pela ciência para otimizar cultivos danificam clima e solo, reduzindo os efeitos da tecnologia.

Diz o provérbio que em casa onde falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. É o que tem ocorrido em nível mundial quando se fala em segurança alimentar e biocombustíveis. Enquanto isso, a inflação sobe, a comida falta e a devastação ambiental continua. Soluções precisam ser encontradas com urgência ou logo teremos a guerra definitiva. E ela será com pauzinhos pelo último nigirizushi.

* Publicado em O Globo Online, 21 de maio, em A Notícia de Joinville, 22 de maio, no Diário de Canoas, 23 de maio, e na Gazeta do Sul, 26 de maio de 2008.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Acabaram com a piada

Deus criou a Terra e distribuiu adversidades por todo globo. Contudo, Ele reservou ao Brasil um clima propício, uma natureza exuberante, homens cordiais e mulheres lindas. Um anjo ao ver este lugar maravilhoso perguntou: Senhor, por que esse País é assim e os demais cheios de problemas? Ao que o Todo Poderoso respondeu: Espera para ver o povinho que vou colocar lá!

Essa anedota devia ter uns quinhentos anos quando no fim de abril uma agência internacional de avaliação de risco classificou o Brasil como "investment grade", sinalizando para os mercados estrangeiros que aplicar recursos com segurança aqui é possível. Lula traduziu essa declaração dizendo que agora somos considerados um País sério. Ou seja, esse povinho é merecedor da confiança mundial. "Le Brésil n'est pas un pays sérieux", frase imputada a De Gaulle, perdeu o sentido. E a pilhéria atribuída ao Criador não tem mais o espírito original.

Além disso, não foi só essa parte da galhofa que ficou sem graça. No último aniversário da chegada de Cabral fomos "presenteados" com um terremoto (sem vítimas, amém) com 5,2 graus na escala Richter. O tremor atingiu São Paulo, Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Seu epicentro foi registrado no mar a 270km da capital paulista. Na seqüência, em maio, um ciclone extratropical provocou destruição a mais de 100km/h no sul do País. Fenômenos naturais adversos também fazem parte da nossa realidade.

O curioso é que o Peru havia sido o país mais recente a ter o reconhecimento de seriedade pelos investidores financeiros. Esse nosso vizinho também tem um histórico de terremotos superior. O último em 2007 chegou a 8 graus. Após o tremor principal, alertas de tsunami foram emitidos ao Peru e ao Chile (outro dos países sérios). Será que é a natureza convulsionada que amadurece as nações?

Já as riquezas nativas do Brasil estão nas manchetes diárias pelos motivos mais miseráveis. Desmatamento, tráfico de animais silvestres, queimadas, ameaça à biodiversidade, contaminação das águas, mortandade de peixes. Até uma crise envolvendo indígenas e fazendeiros pelo "direito" de devastar parte da Amazônia na reserva Raposa Serra do Sol em Roraima está em pauta. A belicosidade é outra das características encontradas entre os países respeitados na economia mundial a começar pelos Estados Unidos da América.

Acabaram com a piada. E daí? Outras surgem sem precisar de intervenção divina. No País das dançarinas de funk com quadris de três dígitos, o Fenômeno dos gramados, famoso por suas namoradas de placa, confundiu três produtos piratas com material legítimo. Créu nele. Após uma noitada a quatro com espelhos e cama redonda, começou o dia envolvido em um conflito, fazendo troca-troca de acusações com travestis em uma delegacia. Fala sério!

* Publicado no Diário de Canoas, 14 de maio, na Gazeta do Sul, 15 de maio, e no Agora de Rio Grande, 16 de maio, e no Diário Popular de Pelotas, 19 de maio de 2008.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A Lugo o que é de Lugo

Fernando Lugo, presidente eleito do Paraguai, quer discutir o preço da energia da usina hidrelétrica de Itaipu pago pelo Brasil. Recordando, a usina foi construída no rio Paraná, na fronteira entre os dois países. Pelos termos do tratado binacional, os brasileiros ficaram responsáveis pelos recursos financeiros que viabilizaram a obra. Isso se deu por meio da obtenção de empréstimos em instituições financeiras privadas e bancos estatais estrangeiros. Ou seja, uma parte da nossa famosa dívida externa, já sanada, mas que só terminará de ser paga em 2023.

Ficou decidido que a energia gerada pela usina seria dividida em partes iguais entre os dois sócios. Porém o Paraguai utiliza apenas 5% da dele, o suficiente para suprir 95% de sua demanda. Logo, o Brasil fica com o resto e paga por isso. Lugo questiona a legitimidade do atual valor que os paraguaios recebem. Sob o ponto de vista legal, sabe-se que pouco pode ser contestado. A solução jurídica contratual é considerada uma das mais importantes contribuições do jurista Miguel Reale (1910-2006). O debate se encontra na esfera da validade ética desse acordo nos dias de hoje. Considerando o poder econômico da cada nação e a importância disso no campo das relações internacionais do Mercosul, o preço em vigor é socialmente justo? É aceitável que a tarifa seja paga pelo custo e não pelo valor de mercado? Tudo que é legal é também legítimo?

Essa tem sido uma polêmica recorrente toda vez que novos governos em quaisquer latitudes encontram contratos que não atendem aos seus interesses ideológicos. Não sendo possível objetar a legalidade na maior parte das vezes, tudo recaí nessa retórica que busca desmoralizar a autenticidade do que foi outrora firmado. No presente caso, é até possível saudar essa mudança. Quem diria que o país da "garantía soy yo" estaria protestando contra a legitimidade de algo.

Neste pleito, o futuro presidente da República do Paraguai deve estar contando com o histórico do governo Lula que cedeu no caso do gás boliviano e no perdão de dívidas de alguns países africanos. No entanto, ainda que improvável, um encontro de contas deveria ser proposto para resolver a questão. Se a energia deve ser remunerada de forma correta, também é preciso calcular o débito paraguaio pela construção da maior hidrelétrica do mundo em geração de energia.

Passada a régua, faça-se o que Jesus propôs ao confirmar para um grupo de fariseus e herodianos a licitude dos impostos cobrados por Roma, indicando que as moedas imperiais deveriam ser entregues para César porque lhe pertenciam. Como ex-bispo católico, o paraguaio deve conhecer bem esses versículos. Mandem a fatura com os dois valores: o que for justo pagarmos e o que é certo eles nos devolverem. Que seja dado logo a Lugo tudo o que for de Lugo.

* Publicado no Diário Catarinense, 06 de maio, e no Jornal VS, 13 de maio de 2008.