terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Faixas, fontes e futilidades


Para quem não acompanha o noticiário porque lhe causa azia, informa-se que o começo de 2009 foi marcado por uma guerra. Aliás, muitas. Mas foi o conflito na Faixa de Gaza que mobilizou as atenções globais. Pessoas morreram lá. Crianças. Porém, também morrem ali na esquina e não há luta armada aqui, ao menos declarada. Coisas gravíssimas podem ocorrer em qualquer lugar. No entanto, existe gente que não se sente afetada por isso. Para essa turma interessam os pequenos problemas, as futilidades.

Em Porto Alegre, por exemplo, um chafariz é a causa de discórdia. Presente de espanhóis para o Estado pelo centenário da Revolução Farroupilha em 1935, a Fonte Talavera estava danificada desde 2005. Três anos depois eis que ela ressurge restaurada com uma configuração diferente. O formato de taça de champanhe virou cálice de vinho. Na base apareceu uma faixa azul que não era vista antes. Pronta a celeuma.

É óbvio que houve desleixo ao recuperar-se o chafariz assim, começando pela justificativa surreal. Não se conseguiu reconstruir o monumento com a forma de taça. Ou seja, a tecnologia do século 21 não é capaz de refazer o produzido há 73 anos. Constata-se então que a nova Fonte Talavera já não é mais a doação de 1935, logo não tem o valor histórico, cultural e artístico da original.

O caso é tão grave que é possível que a Fenachamp de Garibaldi alegue um favorecimento à Fenavinho de Bento. E a direção do Inter deveria exigir a inclusão de uma faixa vermelha nomonumento, neutralizando a influência ideológica que só pode ter partido do prefeito Fogaça e do vice Fortunati, ambos conselheiros gremistas.

Enquanto isso, pessoas choram mortes em Gaza. Crianças. E também choram ali na esquina.

Pois tem mais. O 56º Congresso Tradicionalista Gaúcho, ocorrido em Canguçu, foi mais longe no debate de futilidades. Folcloristas pacificaram outra fonte de cizânia: a roupa da prenda. Após uma discussão entusiasmada, concluíram que a mulher gaúcha pode usar roupas de montaria ou bombachas femininas, mas traje de gala é vestido. Aquele com faixas, fitas e babados. Depois ficam bravos com as brincadeiras do Casseta e Planeta.

E crianças continuam morrendo. Em Gaza e ali na esquina. Haja antiácido.

* Publicado no Diário de Canoas, 27 de janeiro, na Gazeta do Sul, 29 de janeiro, e em O Correio de Cachoeira do Sul, 04 de fevereiro de 2009.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Crocodilos não são a solução


Venha morar com a tranquilidade proporcionada por um sistema de segurança total: exército particular, ponte levadiça, caldeirões com óleo fervente e fosso com crocodilos. Esse poderia ser o anúncio de um imóvel na Idade Média, mas os lares de hoje não são muito diferentes, verdadeiras fortalezas protegidas por vigilantes, guaritas, câmeras e cercas eletrificadas. Só faltam os répteis.

No entanto, como nos tempos em que os bárbaros se lançavam contra reis aquartelados, vem crescendo uma modalidade de delito: o arrastão em condomínios de luxo. Esse fenômeno talvez possa ser explicado a partir de observações sobre as relações entre o espaço urbano e a criminalidade.

A fragilidade verificada em complexos residenciais fechados resulta das características desses empreendimentos. Com o objetivo de afastar-se da violência das ruas, essas áreas costumam ser construídas envoltas por muralhas, localizando-se em bairros com baixa densidade demográfica. A aparente proteção intramuros provoca a insegurança no lado de fora, já que as vias externas são pouco movimentadas e não se tem a visão desses acessos a partir do interior.

Logo, a ação para os delinquentes se resume a um conflito bélico entre eles, motivados e dispostos a tudo, e o exército particular do complexo, em geral desorganizado e descomprometido. E cada vez mais se tem notícia desse tipo de crime.

Especialistas se apressam em ditar recomendações, quase todas relativas à conscientização dos moradores para que esses obedeçam a regras marciais de comportamento. Todavia, isso não irá resolver as questões estruturais que afetam os condomínios fechados.

Na realidade, é necessária a revisão dessa opção urbanística, apostando-se em alternativas para que toda a sociedade desfrute de um ambiente protegido e não apenas alguns grupos encastelados. Sob o ponto de vista da segurança pública, o ideal é impulsionar atividades que gerem circulação de pedestres e veículos, aumentar a densidade de edificações e combinar espaços públicos residenciais e comerciais dentro de um mesmo bairro. Ou seja, é preciso estimular que as pessoas convivam mais entre si, pois não são grades que podem acabar com o problema. E, definitivamente, crocodilos não são a solução.

* Publicado em Zero Hora, 23 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sobre gastos públicos e mitos


Não resta dúvida de que o dinheiro dos contribuintes brasileiros costuma ser mal gasto. Por vezes, um investimento vira uma ponte ligando nada a lugar nenhum. No entanto, essa situação já foi pior. As atuais administrações tendem a ser melhores do que as que criaram essa imagem. Por isso, é preciso desfazer alguns mitos sobre os dispêndios do erário.

O primeiro deles diz respeito às despesas com pessoal. Diz a lenda que houve um tempo em que um semianalfabeto entrava como contínuo no serviço público e se jubilava com proventos de marajá. Após a Constituição de 88 e a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que sobrou são funcionários concursados, muitos pós-graduados, a maioria ganhando pouco. Hoje, alguém de poucas letras só repete a trajetória mítica elegendo-se ou assessorando algum parlamentar.

Outra alegoria é a do gasto com inativos. Dizem que ele é crescente e, em alguns casos, maior do que o com servidores em atividade. Isso é parte da verdade. Falta explicar que nessas situações, em geral, há defasagem nos quadros de pessoal. A matemática não mente. Quando o número de ativos diminui com aposentadorias e não é reposto, um dos lados aumentará e o outro reduzirá. O resto é mito.

Agora surgiu uma nova fábula. Estudo recente do Ipea constatou a elevação do custeio e a diminuição dos investimentos. Exceções à parte, é necessário entender o significado disso na prática. Imagine dois municípios. Em um deles se construiu um ótimo hospital com equipamentos avançados, compensando-se o alto investimento com corte nos gastos em suprimentos, limpeza e conservação. O salário dos médicos é baixo - só despreparados aceitam o emprego. No outro a política foi a de pagar bem aos servidores para poder contratar os melhores. Eles atuam em um prédio antigo, com aparelhos antiquados, porém há manutenção e disponibilidade de material.

Qual dos dois você escolheria para cuidar da sua saúde? Se no segundo, sua opção é por pouco investimento e muita despesa com pessoal e custeio.

O ideal é também ter o hospital novo, porém essa utopia fica cada vez mais distante quando a remuneração e os recursos materiais são tratados como desperdício. Sem profissionais e condições de trabalho, os serviços que restarão para população são o nada e o lugar nenhum. Ah, mas vai sobrar dinheiro para as pontes.

* Publicado no Diário de Canoas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 21 de janeiro, em A Razão, 23 de janeiro, na Gazeta do Sul, 26 de janeiro, e no Jornal NH, 26 de fevereiro de 2009.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Sucessão de Lula, seu nome será Dilema


Lula escolheu Dilma Rousseff como sua sucessora. E o Partido dos Trabalhadores? Já engoliu essa decisão? Em tempos de (des)acordo ortográfico, é curioso que a diferença entre o nome da titular da Casa Civil e a palavra dilema seja tão pequena. Pois, no estudo da lógica, esse termo significa um problema com mais de uma solução, sendo nenhuma aceitável ao mesmo instante para todas as partes envolvidas. Dilma candidata pode ser penoso para o PT. Porém, outra indicação do partido seria embaraçosa para o presidente.

Antes da eleição de Lula, encontrar o seu sucessor já era uma questão difícil no PT. José Dirceu foi quem chegou mais perto disso. A queda dele aumentou a interrogação. Então, Dilma herdou tudo. O cargo e o futuro que eram de Dirceu. Mas, ao contrário dele, ela é uma alienígena no núcleo que construiu o projeto de poder do partido.

Por outro lado, quando se trata da trajetória política da ministra-chefe, é preciso considerar que ela não costuma deixar-se abater por dificuldades de qualquer natureza. Pelo contrário, todos os obstáculos na sua vida têm sido superados com uma postura firme. Por exemplo, no ano passado, em seu pior momento no governo, durante seção de uma comissão do Senado, confrontada por Agripino Maia sobre as mentiras que utilizou em seus dias de guerrilheira, ela conseguiu com uma inusual emoção dar a volta no senador.

Posto esse cenário, conclui-se que tempos interessantes vêm por aí. Luiz Inácio sempre teve o dom da palavra, da conversa e da metamorfose, evoluindo de sapo barbudo a "Lulinha Paz e Amor". Com seu estilo que mistura o estereótipo de sargentão com o de tecnocrata insensível, Dilma é a antítese dele. Se a alcunhada "mãe do PAC" deseja ser uma legítima herdeira política do presidente deve saber que terá pouco mais de um ano para aprender o que Lula levou vários. Isso sem que ela se torne artificial, o que criaria mais um dilema.

Sem tempo a perder, a chefe da Casa Civil já tomou a primeira medida. Uma cirurgia plástica para suavizar seu semblante de pedra, tentando torná-lo, senão bonito, ao menos simpático. No entanto, pelo que se sabe a medicina ainda não consegue intervir com a mesma eficácia em outra necessidade que a ministra vai ter, a de amenizar o seu espírito para enfrentar cumprimentos, beijos, abraços e as demais peculiaridades das campanhas eleitorais. Ou se encara isso com um sorriso ou é melhor desistir. Como todo candidato, desse dilema ela também não poderá escapar.

* Publicado em O Globo Online, 13 de janeiro, no Diário Popular de Pelotas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 15 de janeiro, em A Razão, 16 de janeiro, na Gazeta do Sul, 17 de janeiro, e no Diário de Canoas, 03 de fevereiro de 2009.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Pausa para sonhar


Dia da coleta de lixo seco. Um homem e sua filha se apressam para recolher latas de alumínio antes que o caminhão da prefeitura leve embora o ganha-pão deles. É um trabalho que costuma ter surpresas. Em uma dessas, a menina encontra um controle quebrado de videogame. O artefato com alavancas e botões coloridos recebe a sua atenção. Por um momento, ela senta na beira da calçada e se dá o direito de admirar aquele objeto.

Do ponto de vista eletrônico, o controle é inútil, mas a garota não se importa. Ela mexe nas teclas como se algo estivesse em funcionamento. De forma lúdica, aquela peça plástica torna viáveis as fantasias da filha do catador, transportando-a para lugares sobre os quais só é possível fazer suposições.

Em quais jogos ela estará envolvida agora? O da princesa guerreira que enfrenta dragões? O da heroína intergaláctica que elimina alienígenas? O da policial que persegue facínoras? Isso se os desejos dela se restringirem a fazer parte da lógica dos videogames.

Talvez a jovem esteja longe dessas ficções, viajando entre as próprias ilusões. Enquanto movimenta as alavancas, pequenas varinhas de condão, ela sonha acordada em ser alguma das cinderelas atuais. A mocinha da novela ou a ganhadora da loteria. A apresentadora do telejornal ou a cantora baiana. A gata do Big Brother ou a modelo internacional.

Ainda no campo das conjecturas, quem sabe a menina, ao apertar os botões, queira abrir portais para outros mundos. Em um universo alternativo, ela seria a filha de um técnico em reciclagem que recebe um salário justo para o sustento familiar. Ela estaria estudando de manhã e à tarde em uma escola pública de qualidade, preparando-se para entrar em uma faculdade com todas as perspectivas de futuro pela frente: ser médica, engenheira, jornalista.

De repente, palavras ásperas do pai interrompem os devaneios da garota. Levanta. Vamos trabalhar. Temos pouco tempo até o caminhão chegar. Despertada para a realidade, ela hesita entre guardar o controle e deixá-lo ali, já que não tem valor comercial. Resolve colocá-lo em um canto do carrinho do pai. Quem sabe, mais tarde, ela o acione, tendo outra vez uma pausa para sonhar. Enquanto isso, a jovem volta ao jogo da vida em que cada latinha juntada representa um pouco mais de comida na mesa. E no qual perder é muito mais do que o “game over” na tela.

* Publicado em O Informativo do Vale, 12 de janeiro, na Gazeta do Sul, 13 de janeiro, e no Jornal NH, 20 de fevereiro de 2009.