quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Bolsa-tênis e tíquete-vida

"Bandido mata para roubar tênis". Essa frase já foi manchete um dia e nunca pode ser banalizada. Se uma vida vale menos que um calçado, a inversão de valores está escancarada. Quando se define alguém pelas coisas que ela tem, a pessoa acaba avaliada pelo que pode comprar. Um calçado esportivo autêntico e de marca custa mais que o salário mínimo, que o soldo de um policial, que o vencimento de uma professora. Vale tanto quanto uma arma ilegal. No entanto, depois de roubado, com freqüência é trocado por pedras de crack que custam apenas alguns reais cada. Com perdão de Camões, o vício no caso é o valor mais alto que se levanta.

A ascensão do tênis como objeto de desejo é uma prova da força que possui a publicidade ao associar atitudes a marcas. "Impossível é nada" e "eu sou o que sou" são exemplos de conceitos que determinados logotipos em calçados esportivos representam para quem os consome. O poder da marca também é a porta para outros crimes como pirataria e contrabando. Se o valor reside no símbolo destacado no tênis, a qualidade e a origem do produto se tornam secundárias. O que importa é a insígnia do fabricante que dará ao portador a sensação de ter as qualidades que são associadas a ela. A mágica é que as aparências realmente enganam.

Ao tênis acabam associados o roubo, o latrocínio, a falsificação, o descaminho e outros delitos utilizados para a obtenção de uma renda que o trabalho legal muitas vezes não proporciona. Inclusive, o calçado virou gíria para designar armas. A suspeita sobre o cantor Belo que acabou preso começou numa conversa telefônica interceptada na qual ele emprestaria dinheiro a um traficante em troca de um "tênis" AR-15.

Questões para que o Estado conserte ou, mais especificamente, para que a segurança pública resolva. Dentro da atual linha de políticas públicas adotadas, talvez seja o momento dos governos criarem um programa social do tipo bolsa-tênis com a distribuição em massa de calçados da moda para todos que se sentem marginalizados por não terem como adquirir esse produto e os adjetivos que ele carrega. Resolvido o problema do tênis, só faltaria acabar com o contrabando de armas, o narcotráfico, a corrupção, etc.

Como se costuma dizer, se fosse fácil assim já teria sido feito. A realidade é mais complexa, mas um começo possível seria revisar as nossas prioridades. Ou se passa a gostar das pessoas pelo que elas são ou logo teremos o bolsa-tênis, o vale-crack, o tíquete-vida...

* Publicado em O Globo Online, 24 de setembro, no Diário Popular de Pelotas, 30 de setembro, no Diário de Canoas e Jornal VS, 1° de outubro, e na Gazeta do Sul, 07 de outubro de 2008.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Eleições pré-sal

Desde que a escolha dos prefeitos das capitais voltou a ser de forma direta, não se vive uma eleição tão insípida. A propaganda eleitoral veiculada nesse pleito só é superada na monotonia pela dos tempos da Lei Falcão, quando a televisão reproduzia apenas a fotografia do candidato enquanto o currículo dele era lido.

Os candidatos viraram marcas de sabão em pó. Embalagens (partidos) diferentes, promessas iguais. Tentam provar que fazem o mesmo que os outros só que melhor. Não há originalidade nem criatividade. Não há sonho nem emoção. Faltam apelos que mobilizem os eleitores em torno de algo.

Um indicador é o número de automóveis que portam adesivos de aspirantes a prefeito, por exemplo. Lembre-se de outras eleições e compare. Hoje é raro o carro em que o proprietário declara sua preferência sem que ele seja familiar ou pretendente a cargo de confiança.

Nem nos aspectos folclóricos essas eleições vão bem. A urna eletrônica acabou com o Cacareco e o macaco Tião. Até o Enéas morreu. De estranho só o fato de que boa parte dos postulantes aos cargos de vereadores diz ser capaz de resolver 508 anos de problemas federais. Tudo isso vale para grande maioria dos municípios do país.

Alguns culpam as restrições impostas pela legislação eleitoral por esse pleito de pés no chão que não consegue decolar. Outros creditam à maior fiscalização dos gastos a debilidade das campanhas de publicidade. Seria até possível crer nisso, mas o Tribunal Superior Eleitoral demonstrou o contrário.

A única propaganda boa o suficiente para gerar comentários, movimentar o cenário e causar polêmica foi a do Tribunal. Até um bordão ela conseguiu fixar na cabeça do povo. Quem não gravou que quatro anos é muito tempo? De tão eficaz que foi a mensagem, ela fez com que alguns políticos provocassem a sua retirada por se sentirem atingidos. Porém o TSE acertou outra vez ao lançar um novo conjunto de inserções. Os comerciais protagonizados por Lavínia Vlasak provam que se for para agir como um ator quando se fala em política, que se escolha um profissional. E grávida então? Por que nenhuma candidata pensou nesse tipo de comoção antes? Se o sufrágio fosse ainda em papel, Lavínia faria muitos votos por aí.

Como hoje só se fala em pré-sal, pode-se dizer que esta também é a característica desse pleito eleitoral. Ou seja, antes do sal, sem tempero ou sabor, insosso. Aliás, se paladar não se discute, sem debates interessantes, as eleições atuais só podem mesmo ser classificadas como sem gosto. Blergh!

* Publicado na Gazeta do Sul, no Diário de Canoas e em O Globo Online, 19 de setembro, no Diário Catarinense, 25 de setembro, e no Diário Popular de Pelotas, 26 de setembro de 2008.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Pedágios, tubaína e a Madonna

O debate promovido por especialistas em torno dos pedágios dificilmente escapa do confronto ideológico. Existem argumentos válidos tanto para os que são contra como para os que estão a favor. Já para os demais cidadãos o que importa é o custo e o benefício. Se as tarifas fossem mais baratas quase não haveria reclamações. Se as estradas estivessem em excelentes condições, o muxoxo seria inaudível. O fato é que o preço está acima do aceitável e o estado das rodovias longe do esperado. Aliás, o esforço marqueteiro das concessionárias neste aspecto beira o inacreditável. Tentam provar que vias mais ou menos são ótimas e que o custo elevado é compatível com o serviço oferecido. No entanto, em um mundo que tem tubaína e a Madonna isso não é crível.

Quando o consumidor troca um refrigerante de marca por um genérico da linha popular sabe que não terá a qualidade da cola e do guaraná original, mas a razão do freguês é clara. Ele procura pelo produto mais barato. Quem escolhe pagar menos o faz sem esperar pelo melhor. Só se aceita beber tubaína porque o preço é baixo.

Em contrapartida, quando essa turma decide ir a um espetáculo internacional do nível que a Madonna irá realizar em dezembro no Brasil, o valor a ser gasto se torna secundário. O entretenimento será caro, porém se está ciente que ele vale isso. Não pela excelência musical, algo que pode até ser discutível. O que pesa é a experiência diferenciada que uma artista dessa categoria costuma proporcionar.

Com os pedágios, a tendência é a mesma. Como as rodovias oferecidas não são mais do que genéricos populares, não se fica satisfeito pagando qualquer centavo a mais do que preço de “refrigereco”. E pelos valores atuais, ninguém aceita nada inferior a estradas de primeira linha com gabarito internacional.

A relação entre custo e benefício é um indicador que a intuição do cidadão consegue expressar em termos monetários, devido à repercussão que sente em seu bolso ao avaliar gastos e ganhos. Com as rodovias o processo é semelhante ao que se está acostumado a realizar quando se compra um refrigerante, um ingresso para um espetáculo ou qualquer outra coisa.

Não sendo viável um padrão com tarifas baratas e estradas de qualidade, a única discussão que restará a respeito dos pedágios é essa. Ou o modelo adotado é todo com características de tubaína ou só com atributos de estrela mundial. Enquanto isso não ocorre, seguimos pagando preço de Madonna para dirigir em rodovias de módicas condições.

* Publicado no Agora de Rio Grande e no Diário Popular de Pelotas, 11 de setembro, no Diário Catarinense, 12 de setembro, e no Diário de Canoas, 15 de setembro de 2008.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Investimentos olímpicos

Investimentos olímpicos

O fato de o Brasil ser um país com a vocação para o desperdício provocou uma reação compreensiva. Toda despesa é questionada sob o viés da responsabilidade fiscal, sem diferenciar-se o que é gasto do que é investimento. É o caso do debate em torno dos recursos empregados no esporte olímpico.

Segundo reportagem do jornal O Globo, aplicando-se a frieza contábil, chegou-se ao valor de R$ 53 milhões como o custo de cada medalha brasileira conquistada na China. Nesse cálculo, incorre-se em três erros: falta de paradigma financeiro; subestimação da importância do esporte; e incompreensão dos resultados alcançados.

Quanto deveria ser investido na obtenção de uma medalha? A China ganhou cem delas e gastou R$ 68 bilhões para realizar os Jogos (R$ 680 milhões para cada ouro, prata ou bronze). Logo, cada uma custou quase treze vezes mais do que as brasileiras. Ou seja, para atingir um rendimento chinês, o Brasil precisaria usar esse fator de multiplicação, seja nos valores, seja no tempo de preparação. Já que se reclama do dinheiro consumido no ciclo olímpico, o que implica na ausência de perspectiva de aumento dele, restaria esperar mais 52 anos para se ter uma colocação que não possa ser chamada de pífia.

A cultura fiscal costuma esquecer a repercussão social de algumas despesas. É preciso lembrar que os dispêndios olímpicos envolvem a remuneração não só de atletas, mas de toda uma indústria – de cadarços de tênis a criação de cavalos. De forma direta e indireta, há geração de emprego e movimentação econômica associada ao esporte. Deve acrescentar-se ainda o exemplo que é transmitido de saúde e de qualidade de vida.

Por fim, a contabilidade das conquistas apenas pelo número de medalhas oblitera visíveis avanços do país. As mulheres ocuparam espaços em modalidades antes dominadas pelos homens. As participações em finais aumentaram de 30 em Atenas para 38 agora. E houve inúmeras colocações classificadas como as melhores da história. Além disso, ocorreu uma enorme renovação de atletas o que redundou em menos ouros, mas também na perspectiva de que em Londres, com experiência, eles sejam mais bem sucedidos.

Fiscalizar o que se gasta é fundamental, mas isso não pode ser pretexto para redução dos recursos aplicados no desenvolvimento esportivo, nem razão para se ter menos orgulho. Dinheiro colocado no esporte nunca é desperdício. Os dólares, euros ou reais lançados na coluna das despesas olímpicas são sempre investimentos. Os chineses que o digam.

* Publicado no Diário de Canoas, 04 de setembro, em O Informativo do Vale, 15 de setembro, e no Jornal VS, 13 de outubro de 2008.