quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Uns às urnas, outros às aulas

Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar à escola. Essa frase circula pela rede mundial de computadores entre as chamadas "pérolas de vestibulares" - respostas que causam riso ou estranhamento. Lógico, se alguém é analfabeto, nunca freqüentou a escola. Portanto, como iria voltar?

Contudo, o indeferimento por analfabetismo de candidaturas no atual processo de eleições municipais concedeu algum sentido a essa sentença. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, são 289 nessa situação com incidência em todas as regiões do país. A epígrafe adquire força porque o posicionamento do Judiciário significa a oportunidade de que esses cidadãos retornem às aulas. Ao invés de seguir o caminho das urnas que pode levar à Câmara de Vereadores, nos próximos quatro anos eles terão a chance de voltar para a escola. E vão precisar.

O teste de alfabetização aplicado em inúmeras comarcas consiste de ditados curtos com pequenas variações conforme os entendimentos dos juízes eleitorais. Além disso, quase sempre os candidatos devem preencher seus dados pessoais como nome, data de nascimento e profissão. Ou seja, precisam dar uma pequena prova que sabem escrever. Mas não conseguem.

O número de analfabetos flagrados entre os registros de candidaturas é ínfimo. Porém, o que deveria causar mais preocupação é os 90.676 disputantes que o grau de instrução se resume a ler e escrever. Esse número representa que um a cada quatro se encontra nessa condição em todo Brasil. A princípio, habilitados a passar em um teste primário de escrita, mas talvez incapazes de exercer uma das principais atividades legislativas: representar a população na avaliação de projetos de lei. Para tanto, mais do que ter a aptidão para enfrentar um ditado, é preciso ser capaz de compreender um texto escrito. Caso contrário se está sujeito a decidir sobre o que não entende ou ser manipulado por interpretações de terceiros.

Em uma reforma política séria, critérios que definam melhor a forma de verificar o grau de instrução dos candidatos deveriam ser estabelecidos. Sugere-se que Mário Quintana seja lembrado. Ele dizia que os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem. Incluem-se aí também os que não entendem o que lêem. Discriminação? Não. Sempre será uma oportunidade para eles irem à escola.

* Publicado em O Globo Online, 27 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 28 de agosto, no A Razão, 29 de agosto, na Gazeta do Sul, 02 de setembro, e no Jornal VS, 12 de setembro de 2008.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Marte vai ser aqui

Desde a chegada da sonda Phoenix em Marte no final de maio, novas descobertas sobre o quarto planeta do Sistema Solar foram realizadas. As últimas tratam do encontro de perclorato no solo marciano, substância nociva a algumas formas de vida. Esse achado ainda requer confirmação, mas já se discute como ele afetaria a capacidade daquele astro ser habitável.

Desenvolver um projeto de colonização futura em Marte é uma das motivações do esforço exploratório. Busca-se a confirmação da presença de água e da possibilidade de vir a existir vida lá. Inclusive, em teoria, especula-se a respeito de um processo chamado de “terraformação” que em cerca de dois séculos transformaria o Planeta Vermelho em um mundo verde e azul – agricultável e com oceanos.

No entanto, ao prestar-se atenção na Terra, o atual corpo celeste no qual moram mais de seis bilhões de pessoas, parece ser mais viável que nessas duas centenas de anos se dê o contrário. Ao invés de modificar outro planeta, aqui é que pode virar algo parecido com o que Marte é agora – um lugar sem vida.

Exagero? Enquanto se busca água em Marte, a FAO, agência das Nações Unidas para agricultura e alimentação, já alertou que em vinte anos faltará água para dois terços da população do mundo. O dióxido de carbono corresponde a mais de 95 por cento da atmosfera marciana. De acordo com o instituto americano Center for Global Development, no ano passado os países desenvolvidos emitiram mais de sete bilhões e meio de toneladas de gás carbônico apenas na geração de energia. Marte tem uma superfície absolutamente erma. Segundo a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação hoje um terço da Terra corre o risco de virar deserto. Não há provas de que haja qualquer tipo de flora ou fauna no Planeta Vermelho mesmo que microscópica. No livro O Futuro da Vida, o biólogo Edward O. Wilson estima que, mantida a atual taxa de destruição dos ecossistemas causada pelo homem, metade de todas as espécies de seres vivos estará extinta em cem anos.

Além disso, não se está livre do terrorismo, das guerras globais, de pandemias, da escassez de alimentos e de outros tipos de extermínio. Assim, se a pretensão é tornar um outro planeta habitável, é preciso antes garantir que a Terra não seja a próxima rocha vazia que talvez outras vidas ditas inteligentes venham a explorar daqui a alguns milênios. Ou se preserva a biosfera ou Marte é que vai ser aqui.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 22 de agosto, em A Notícia de Joinville, 26 de agosto, e no Jornal VS, 30 de agosto de 2008.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Cada um no seu quadrado

O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) esteve reunido em Porto Alegre no final de julho. Imagina-se que toda vez que esse colegiado se forma, o objetivo seja debater a qualidade do ensino. Erra quem pensa assim. Na capital gaúcha, os secretários discutiram a legislação que instituiu o piso salarial para professores da rede pública. Eles pretendem a revisão da lei ou ameaçam rebelar-se contra ela.

Os membros do Consed estão entre os beneficiados com a possibilidade de os professores serem mais bem remunerados porque isso servirá de atração para profissionais mais preparados e motivará os atuais educadores. No entanto, mobilizam-se para que isso não aconteça, voltando o seu foco para o impacto financeiro da medida como se fossem os responsáveis pela Fazenda de seus estados.

O que deveria se esperar de uma reunião que tem como pauta os vencimentos dos professores é o questionamento do atual modelo que implica em baixos salários. O ensino e os estabelecimentos oficiais requerem educadores investidos de cargos públicos e atrelados ao sistema de previdência estadual? Os recursos despendidos não teriam melhor aproveitamento em parcerias com a iniciativa privada, que costuma pagar mais e gastar menos? Esse talvez ainda seja um debate com forte viés econômico, mas ao menos ele é voltado para problemas estruturais e soluções pró-ativas.

O fato é que a organização dos governos pressupõe um titular para cada área. Se já existe alguém com o encargo de cuidar das despesas e receitas, não haveria a necessidade de que os secretários da educação relegassem as suas funções para tratar de questões meramente financeiras. Da mesma forma, não caberia à Fazenda pública avaliar a pertinência de qualquer medida solicitada, devendo ater-se à análise se existem os recursos para as necessidades de cada setor. Por exemplo, quem sabe quanto efetivo e equipamento precisa para garantir a ordem é a Segurança Pública; quem estabelece política de prevenção e tratamento de doenças é a Saúde.

É correto que todos os escalões dos governos estejam comprometidos com os resultados fiscais. Porém, a administração é dividida em pastas para que cada uma priorize as tarefas de sua área, observe os limites do que pode fazer e deixe o que está fora de sua esfera para quem de direito. Todos podem até dançar no mesmo ritmo, mas, como diz o sucesso popular, cada um no seu quadrado. E sem pisar na linha.

* Publicado na Gazeta do Sul e em O Globo Online, 12 de agosto, em O Informativo do Vale, 13 de agosto, no Diário de Canoas, 15 de agosto, e no Diário Popular de Pelotas, 17 de agosto de 2008.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Conjunção adversa à ética

Rouba, mas faz. Essa frase tem justificado a atuação de vários políticos desde Adhemar de Barros (1901-1969), duas vezes governador de São Paulo, a quem a sentença é atribuída. No recente episódio do banqueiro algemado pela Polícia Federal, um senador afirmou que se tratava de um bandido, mas que produz e gera emprego. Ou seja, essa é uma mentalidade que ainda tem forte aceitação no País. Uma parcela da população costuma valorizar os resultados obtidos em detrimento da conduta utilizada para alcançá-los. Essa anuência ocorre em todos os níveis. Sempre há uma conjunção adversativa para justificar a falta de ética de alguém. De um estafeta ao presidente da República.

Se o condomínio aumenta e nada acontece no prédio, o síndico vira suspeito. Quando começam as obras, ele ganha fama de quem faz. Não obstante, a pecha de que está levando algum por fora nunca desaparece. Edifício reformado, ele é reeleito. Ninguém respeita o seu sindicato, pois os dirigentes são considerados aproveitadores. Começa a greve e um pequeno reajuste é concedido. Os de sempre continuam mandando. Apesar disso ainda são tachados de tirarem vantagem do cargo. O diretor leva uma beirada em cada venda de jogador, ainda assim o time é campeão. Ele se eterniza no clube. Não falta quem diga: rouba, no entanto, é vencedor.

Não só quem está no poder se enquadra nessa situação. No cotidiano, é comum o uso da idéia de contraste ético entre duas assertivas. Ele ultrapassou pelo acostamento, mas dirige bem. Cobrou de pacientes do SUS, porém, é um médico competente. Espancou os filhos, contudo, é um pai zeloso. Colou na prova, todavia é ótimo aluno. Aceitou propina, entretanto, é bom funcionário.

A ausência de moralidade não é algo percebido só na administração pública. O seu esquecimento se verifica no dia-a-dia. Os governantes corruptos apenas reproduzem um comportamento presente na sociedade. A condescendência como constante tem sido a conjuntura mais adversa à ética. O juízo entre o que é certo ou errado não deveria conviver com mas, porém, contudo, todavia, entretanto...

Mário Covas (1930-2001), outro ex-governador paulista, em seu tempo cunhou a frase que desmistifica a epígrafe: “É preciso acabar com o rouba, mas faz. Quem não rouba, faz mais.” Em qualquer conjunção.

* Publicado em A Platéia, 04 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 07 de agosto, na Gazeta do Sul, 22 de agosto, e no Diário de Canoas, 03 de novembro de 2008.