quarta-feira, 20 de maio de 2009

Por uma vida menos eleitoreira


Exceto em Utopia, o país inventado por Thomas Morus (1480-1535), onde o povo recebia o melhor de um governo perfeito, é compreensível que os processos eleitorais realizados a cada dois anos afetem de alguma forma a sociedade. No entanto, o que se tem verificado é que a escolha bienal de ocupantes de cargos públicos fez com que o cotidiano acabasse conduzido permanentemente pelos humores eleitoreiros.

Em qualquer esfera, os que fazem da política uma atividade profissional estão sempre envolvidos com as eleições. Seja na preparação para um próximo pleito, seja na disputa em torno de uma votação presente, seja nas explicações ou acusações a respeito do resultado de um sufrágio acontecido. Situações essas que terminam contaminando todo o período de 24 meses que intercala a ida dos cidadãos às urnas.

A consequência direta é o inevitável envolvimento da sociedade com o emaranhado de questões que surgem a cada momento. De onde veio o dinheiro da campanha? Que reforma política será feita? Qual é a eleição que está sendo investigada agora? Quando começa a próxima comissão de inquérito? Quem está batendo boca com quem?

Os processos eleitorais deixaram de ser meios para a seleção de condutores do desenvolvimento social. Eles são fins em si mesmos. O mundo real é substituído pela vida eleitoreira. Não são mais as ideologias ou programas partidários que determinam as ações dos detentores de mandatos, mas sim os posicionamentos e decisões que maiores vantagens podem trazer em um pleito futuro.

Como resultado, as razões principais pelas quais parlamentares e governantes deveriam ser escolhidos ficam em um segundo plano. Ao contrário de se organizarem para proporcionar as mais completas condições para a população, os políticos tendem a utilizar os cargos públicos na captação de votos para a eleição seguinte. Do cabide de emprego à farra das passagens aéreas. E as políticas de verdade que se lixem!

O problema não são as eleições a cada dois anos. A grande dificuldade está em separar o momento do sufrágio do que realmente importa: o bem-estar social. Talvez seja preciso encontrar uma solução para o fato de a política ter virado um ofício como outro qualquer. Ou, ao menos, que esses “profissionais” permitam que a vida de todos seja menos eleitoreira. Como? Trabalhando, ora!

* Publicado em Zero Hora, 20 de maio de 2009.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Tudo será ouvido


A audição é o sentido da moda. Para bem ou para mal, todos parecem dispostos a escutar. Tanto na esfera privada quanto na pública há investimentos na criação de serviços de ouvidoria. A ideia é que clientes e contribuintes acreditem que suas opiniões, sugestões e reclamações estão sendo levadas em conta pelas empresas e pelo governo.

Por outro lado, quase toda investigação, legal ou ilegal, tem nas interceptações telefônicas o seu foco principal. E a repercussão das escutas que atingem políticos e grandes empresários se transformou em debate nacional. Por exemplo, a presença permanente desse tema nas manchetes fez da chamada CPI dos Grampos, instalada na Câmara de Deputados desde dezembro de 2007, um processo interminável que ainda não conseguiu apresentar o seu relatório final.

Além disso, tem sido comum o uso de gravadores escondidos para capturar diálogos comprometedores tanto por pessoas que querem proteger-se quanto pelas que desejam incriminar alguém.

Nesse contexto, a famosa frase de Andy Warhol de que todos teriam no futuro quinze minutos de fama deve ser interpretada de outra maneira. Em breve, todos terão algumas horas de suas conversas registradas de forma secreta. Seja por algum órgão público para apuração de um delito ou por criminosos com objetivo de chantagem mesmo.

Falando em notoriedade, uma das penúltimas formas de medir o status de alguém era pelo número de celulares que a pessoa tinha. Isso é passado. Agora o que interessa é a quantidade de grampos que ela sofre. Toda vez que isso vaza para o noticiário acaba tornando o sujeito gravado em celebridade instantânea. O espaço é tão amplo que junto seguem para o estrelato os citados na conversa e o araponga de plantão.

Como qualquer assunto em voga, as escutas clandestinas são matérias obrigatórias para a imprensa. As revistas semanais estão construindo suas tiragens com esse tipo de reportagem. A mais famosa delas um dia ainda vai mudar de nome. De Veja para Ouça.. Aliás, por que não anexar um CD de brinde em cada edição? Não seria mais divertida a audição do batepapo dos outros do que apenas a leitura?

A realidade é que hoje basta ouvir para crer. No entanto, há quem não queira escutar o que se está dizendo por aí. Esse é um direito que qualquer bom ouvidor respeitará. Afinal de contas, aquele que não concorda com algo é livre para dar suas opiniões, colocar suas sugestões e fazer suas reclamações. Por isso, não se preocupe. Fale. Tenha certeza de que tudo será ouvido.

* Publicado no Diário de Canoas, na Gazeta do Sul e no Jornal NH, 12 de maio, no Agora de Rio Grande, 13 de maio, e no Correio de Gravataí, 18 de maio de 2009.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Falem sério, presidentes!


Há o que se pode falar em público e o que só é aceito no convívio privado. Apesar da trivialidade disso, vez por outra alguns caem na armadilha. Nos últimos tempos, dois conhecidos presidentes entraram nessa cilada.

Obama se tornou o primeiro presidente dos Estados Unidos em exercício a aparecer num programa de entretenimento na televisão. Ele concedeu uma entrevista para o humorista Jay Leno – um Jô Soares de lá. Descontraído, Barack tentou fazer uma piada. Ele associou a sua inabilidade no boliche com os Jogos Paraolímpicos.

O gracejo virou a gafe mais comentada até agora do atual presidente norte-americano. Ele se viu obrigado a formalizar um pedido de desculpas para os portadores de necessidades especiais, além de precisar demonstrar que não tem preconceito em relação a deficientes. Aliás, Barack apelou para algo que não deixa de ser parecido, na forma, com o que alguns costumam fazer em relação a negros como ele.

De resto, piadas deveriam ser proibidas nas manifestações de qualquer presidente. Apesar de todos se acharem os “caras”, isso nunca dá certo. George W. Bush cometeu tantas gafes que, reunidas, elas foram suficientes para gerar livros, filmes e programas de tevê.

Já Lula, em seus mais de seis anos de mandato, soma um enorme anedotário. E não se diga que isso tem a ver com sua pouca escolaridade, pois nem Fernando Henrique Cardoso, com todos os seus títulos acadêmicos, escapou de um ou outro papelão. Porém, Luiz Inácio mantém outra mania: a do improviso inconveniente. Foi assim que ele acabou dizendo que a crise mundial era culpa dos loiros de olhos azuis. Nada diferente do escreveu Michael Moore em seu livro “Stupid White Men”, mas politicamente incorreto quando vindo de um presidente de uma nação multiétnica.

Evitar fiascos é uma lição a ser aprendida pelos detentores de mandatos públicos. Até porque sempre tem alguém que enxerga outras intenções. Alguns dizem que, quando as gafes acontecem, na verdade está se tentando chamar a atenção para algo ridículo, evitando que se trate de coisas piores. Quem opta pela comédia por vezes apenas está querendo esconder uma tragédia. Por isso, seja falando ou trabalhando, o que todo povo quer de um presidente é seriedade. E que deixe as piadas para o Jay e para o Jô, os “caras” certos para isso.

* Publicado na Gazeta do Sul, 14 de abril, no Diário de Canoas, 15 de abril, em A Notícia de Joinville, 26 de abril, e em O Informativo do Vale, 27 de abril de 2009.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A ultraviolência


O livro Laranja Mecânica, de Anthony Burguess, escrito em 1962 e transformado em clássico do cinema nove anos depois por Stanley Kubrick, pegou emprestado seu título de uma expressão na qual a fruta automatizada representa tudo que é bizarro. A obra se caracteriza assim por tratar de um futuro peculiar no qual a juventude é adepta da ultraviolência. Roubam, espancam, estupram e até matam por puro deleite.

Pois o que era estranhamento no romance de Burguess se tornou realidade no Brasil e no mundo. Várias ocorrências atestam isso. São os massacres perpetrados por atiradores nos Estados Unidos e na Europa; os atentados praticados por terroristas suicidas em busca do paraíso e das virgens reservadas para eles; e as brigas agendadas pela internet entre torcidas organizadas ou adolescentes entediados. Também se enquadram os casos que envolvem grupos formados para prática de ódio racial. Ainda há um forte indício de ultraviolência nas agressões de alunos a professores e até mesmo de filhos aos pais. Enfim, a qualquer um que tenha por dever autoridade sobre eles.

A perda de referenciais do que é certo ou errado é uma característica da sociedade sombria do livro e do filme e da aldeia global em que vivemos. Sem paradigmas sólidos, tudo se resume à procura de prazeres fugazes. Todas as experiências passam a ter como regra o cometimento de abusos. E a brutalidade nas suas mais diversas manifestações não é exceção.

Percebida a presença da ultraviolência como denominador comum, o que se pode fazer? Em Laranja Mecânica, como obra ficcional que é, na qual tudo é possível, aparece como opção a lavagem cerebral. No mundo real, algo assim feriria tanto a condição humana quanto quaisquer das selvagerias citadas. No entanto, talvez seja viável entender o conceito de limpeza da mente de uma outra forma.

Se a ultraviolência está por aí, ela precisa ser enfrentada. Isso pode iniciar com um expurgo de preconceitos, acompanhado de uma depuração dos valores individualistas. E para completar a lavagem, dois fortes agentes limpadores do meio social: a infância protegida e a adolescência com limites. Porém isso tudo precisa acontecer já, antes que essas atitudes se tornem raras. Ou tão bizarras quanto uma laranja mecânica.

* Publicado em A Notícia de Joinville, 02 de abril, na Gazeta do Sul, 04 de abril, no Diário de Canoas e no Diário Popular de Pelotas, 06 de abril, e em O Informativo do Vale, 08 de abril de 2009.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Os "dipones" do Senado


Todo mundo já ouviu falar dos aspones, os assessores de porcaria nenhuma. Pois no Senado Federal foram promovidos a diretor. Semana passada, o país tomou ciência de que eles chegaram a ser 181. Em um surto moralizador, o presidente daquela casa parlamentar determinou a dispensa deles. Depois exonerou só 50. Por ora eles são 131. Enquanto se aguarda uma reforma administrativa elaborada por alguma consultoria muito bem remunerada, o estranhamento maior ficou por conta do processo de conta-gotas por meio do qual se teve noção do nome das diretorias. Quem tinha a lista completa não estava muito disposto a informar.

No momento é impossível não tentar imaginar que diretorias podem existir nesse emaranhado de repartições. Para começar segue a sugestão de uma fonte anônima: a Secretaria do Jeitinho. A partir de uma lógica de eficiência, um cidadão que desejasse alguma benesse particular poderia preencher o formulário apropriado e encaminhar seu requerimento para o oficial do Jeitinho. De forma diligente, o diretor expediria um memorando urgente para o parlamentar mais adequado ao pleito. Contudo, pensar isso seria um exagero até para o Senado.

Que tal então a diretoria de Garantias do Plenário Vazio? Algumas pessoas que acompanham as transmissões da TV Senado comentam que próximo das entradas costuma ter um funcionário que talvez seja quem se certifique de que os senadores não irão à sessão do dia. Ou seja, os parlamentares só não comparecem por respeito às atribuições desse diretor. Em contrapartida haveria a Subsecretaria do Discurso para Plenário Vazio. Essa repartição acumularia funções, pois além de escrever o roteiro da oratória do escalado para falar às paredes, ainda se encarregaria de arranjar alguém para esse papel. Que trabalheira!

Refletindo um pouco mais sobre a questão, pode chegar-se à conclusão de que todas essas diretorias podem ser insuficientes. É bem possível que oficialmente a Diretoria de Porcaria Nenhuma esteja desocupada. Por isso cabe um aviso aos interessados. Esperem o próximo escândalo em outro órgão, quando o Senado poderá preencher essa imprescindível vaga sem que o grande público seja informado. Candidatos a “dipone”, aguardem!

* Publicado em O Informativo do Vale, 26 de março, no Diário Popular de Pelotas, 30 de março, e no Diário de Canoas, 31 de março de 2009.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Quem quer ser um miserável?


O vencedor do Oscar 2009 de melhor filme recebeu um título nacional que apela para o desejo de riqueza: "Quem quer ser um milionário?". Além desse anseio, pode-se supor que junto a ele esteja presente um sentimento assemelhado, porém menos glamoroso: a repulsa à pobreza. Em uma realidade penosa, a ambição muitas vezes nada mais é do que um plano de fuga. A partir da compreensão do longa metragem sob esse aspecto, talvez seja viável entender as posturas existentes no contexto brasileiro em relação a algumas situações de carência absoluta.

A aventura cinematográfica tem como cenário a Índia atual, onde se desenvolve a trajetória do jovem Jamal, de origem humilde e baixa escolaridade. Apesar de ter a orfandade e a exclusão como biografia, ele está prestes a ganhar milhões, porém precisa provar à polícia como adquiriu o conhecimento para responder as perguntas de um programa de tevê. Nesse panorama vai sendo apresentado um país diferente daquele que muitos já afirmaram um dia ser refratário à violência e ao crime devido a uma cultura de aceitação da miséria disseminada.

Enquanto na novela das nove é apresentada uma sociedade dividida em castas, cercada de superstições por todos os lados, na Índia do filme há tortura policial, favelas controladas por bandidos, chacinas, furtos para subsistência, prostituição infantil e homicídios. Mas, dentre o conjunto de delitos que perpassam o roteiro dessa história, nada supera em horror a exploração da mendicância de crianças. Meninas e meninos, além de sofrerem esse abuso moral, chegam a ser mutilados para maximizar os lucros. Por exemplo, seus opressores sabem que garotos cegos recebem esmolas maiores. Ou seja, a pobreza conjugada com a deficiência faz com que os turistas estrangeiros paguem mais para se sentirem aliviados em relação a essas desgraças.

A obra do diretor Danny Boyle apresenta as enfermidades sociais indianas, porém nelas se enxergam as do Brasil de hoje. Aqui a sociedade não costuma considerar a questão da exclusão como uma responsabilidade sua. Espera-se que os governos resolvam o problema. E se sabe que eles não estão resolvendo. De quando em quando se dá uma moedinha para os "trombadões" nos semáforos. A repulsa à pobreza tem disso. Para que a consciência fique menos pesada alguns centavos bastam. As pessoas seguem seus caminhos e os pedintes ficam ali com as migalhas.

O sentimento de aversão é mais que natural. Afinal de contas, quem deseja envolver-se com a indigência? Os mendigos daqui, da Índia e do resto das favelas do mundo também manteriam distância dela se pudessem. A verdade é que ninguém quer ser um miserável, mas para os excluídos essa opção nunca está entre as alternativas. Para eles, sempre faltam as respostas certas.

* Publicado em O Globo Online, 16 de março, em O Informativo do Vale, 18 de março, no Diário Popular de Pelotas, 20 de março, na Gazeta do Sul, 21 de março, e no Diário de Canoas, 25 de março de 2009.

A última ponta


Os resultados da pesquisa sobre os jovens e o fumo, encomendada pela Aliança de Controle do Tabagismo ao Datafolha, são surpreendentes de diversas maneiras. Os dados obtidos podem ser considerados notícias agradáveis e servem para confirmar uma tendência. Porém, do ponto de vista gaúcho, são um tanto decepcionantes.

Uma das boas novas é que 85% dos 560 jovens pesquisados, de ambos os sexos, são contrários ao fumo em ambientes fechados. Até entre os fumantes a maioria tem essa posição (63%). Realizado em seis capitais no final de 2008, o levantamento divulgado agora apresenta uma constante. Independente de sexo, faixa etária, cidade ou local freqüentado – bar, casa noturna, restaurante ou lanchonete, a maior parte dos entrevistados se posicionou a favor de espaços livres do cigarro. Ou seja, a juventude não quer ir a lugares enfumaçados.

Parece que as pessoas cansaram de serem fumantes passivas, de ficarem com as roupas e os cabelos fedendo, de pisarem em cinzas e tocos e até do eventual esbarrão com uma ponta de cigarro aceso. No entanto, o principal é que há uma nova postura contra a permissividade de atitudes que são prejudiciais à saúde de todos.

Em uma época em que se debatem o uso de drogas e restrições ao álcool, essa pesquisa ratifica a eficácia do combate integrado a um hábito nocivo, conforme propõe o Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O controle do tabagismo no Brasil tem combinado três sistemas regulatórios: o legal, o cultural e o moral. Ao mesmo tempo em que se estabelecem restrições progressivas ao ato de fumar, a sociedade exerce a fiscalização para que as leis funcionem e o costume em si se tornou depreciativo para quem o possui. Quando tudo isso acontece, o vício diminui. Se há êxito com o cigarro também poderia ser tentado com o álcool e outras drogas.

A comprovação desse fato está na revelação de que apenas 13% dos entrevistados fumam na faixa etária pesquisada de 12 a 22 anos. Quando segmentados por capitais, os números são iguais ou menores. A taxa é de 13% em São Paulo, 12% no Rio, 10% em Salvador e Belo Horizonte e 6% em Brasília. A surpresa desagradável fica por conta dos resultados de Porto Alegre, que apresentou o maior número de jovens fumantes: 28%. Com mais do que o dobro da média do levantamento, o percentual do vício entre os gaúchos não deixa de ser mais um sintoma da forma por vezes irracional como se resiste a mudanças nesse rincão.

Em uma ou duas gerações quando o fumo for apenas uma triste lembrança para o resto do país, aqui na nossa posição meridional seremos a última ponta acesa desse hábito que a maioria já não aprova. Logo, vale lembrar uma das campanhas antitabagistas e perguntar: quando vamos apagar essa ideia?

* Publicado no Correio de Gravataí, 16 de março de 2009.

terça-feira, 3 de março de 2009

Obscenidades cotidianas


A invasão da pornografia na arte e na mídia é o tema de uma mostra em Viena. O evento na capital austríaca é uma tentativa de lidar com algo que está presente em larga escala em qualquer coletividade, mas, quando não realizado em segredo, costuma causar escarcéu.

Na comparação com a realidade brasileira, pode-se dizer que a ocorrência dessa exposição seria inviável. Não há museu capaz de comportar o material disponível. O Brasil é um país em que nádegas abundam e mamilos despontam em profusão. Onde essa exibição é feita às claras e não requer espaço organizado ou programação antecipada.

Agora, ao considerar-se o sentido pleno em grego do que é pornô, fica mais explícita a impossibilidade brasileira de reunir em um único local toda a coleção existente. Falam-se aqui de obscenidades mais amplas como a indecência e a desonestidade. Destacam-se aí algumas das principais sem-vergonhices nacionais: a violência e a corrupção.

Em relação à primeira, verifica-se que ela tem frutificado mais do que os apelidos para dançarinas de funk. Há a bestialidade do crime e do trânsito. A crueldade nas escolas e nas famílias. A brutalidade no campo e na cidade. A fúria nos estádios. As agressões físicas e psicológicas. O ódio nas palavras e nos atos. Enfim, violência para todos os desgostos.

Já a corrupção, como precisa de segredo para evitar o flagrante, aproxima-se muito da pornografia no seu sentido original. E mais, como partes de um corpo que se desvenda sob tecidos transparentes, essa espécie de devassidão tem sido revelada ao público em porções cada vez maiores. Do “fora Collor” ao desabafo de Jarbas Vasconcelos, passando pelo escândalo do mensalão, a esperança é de que ainda se conseguirá pegar alguém com as calças nas mãos.

Passado o carnaval, época em que a invasão de nádegas e mamilos atinge o seu ápice, restam as demais bandalheiras. Depois de toda quarta-feira de cinzas, somos obrigados outra vez a acostumar-nos com a violência e a corrupção. Enquanto os austríacos vão a museus de arte contemporânea para perceber a penetração do pornô no seu dia-a-dia, nós brasileiros temos que conviver com as obscenidades cotidianas em todos os lugares. Na Áustria, a exposição é temporária. Aqui, a falta de decência e de honestidade tem sido permanente. Que tal começarmos a boicotá-las?

* Publicado em A Razão, 03 de março de 2009, na Gazeta do Sul e em O Correio de Cachoeira do Sul, 04 de março, e no Diário Popular de Pelotas, 10 de março de 2009.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Phelps e o Posto 9


Na semana em que se divulgou uma fotografia na qual o maior nadador de todos os tempos aparece fumando maconha, também houve um confronto entre policiais e populares durante uma ação para coibir o consumo da droga na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Os dois episódios, que se conectam pelo entorpecente envolvido, tiveram repercussões diferentes que merecem ser comparadas.

Michael Phelps veio a público pedir desculpas, prometeu que isso não se repetirá e pensa em parar de competir após os próximos Jogos Olímpicos, abreviando sua carreira. Alguns patrocinadores ainda o apoiam e seu arrependimento foi aceito por órgãos esportivos internacionais. No entanto, o ganhador de oito medalhas de ouro em Pequim não escapou de punições. A federação norte-americana o suspendeu por três meses, com perda de ajuda financeira inclusive, e seu contrato com uma marca de cereais não será renovado. As penalidades se devem à conduta incompatível com a de um atleta que é modelo para a juventude.

Já no Posto 9 de Ipanema, policiais, ao abordarem um rapaz que fumava maconha, foram cercados e feridos pelos frequentadores da praia. Na confusão, o carro da PM foi danificado. No dia seguinte, jovens consumiam normalmente a droga no Posto 9 e apitos reapareceram, um velho costume usado para alertar sobre a presença da polícia. Em Brasília, os ministros Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) e Carlos Minc (Meio Ambiente) estudavam mudanças na lei para resguardar os consumidores de droga. A intenção é protegê-los do constrangimento de serem abordados. Só faltou proporem uma punição para os três PMs hostilizados em Ipanema.

Esses relatos servem para expor a disparidade do que representa consumir drogas em cada país. Sabendo-se que aqui os tóxicos são os maiores propulsores da criminalidade, o episódio em Ipanema ganha significância. Enquanto a sociedade e as autoridades brasileiras não combaterem a procura por entorpecentes, como esperar que meninas e meninos não os experimentem? A insistência na blindagem do usuário é o mais forte aliado do tráfico e da violência. A sorte de Phelps é que ele estará aposentado em 2016, ano em que os Jogos Olímpicos podem ser no Rio. O Posto 9 seria um péssimo exemplo para ele, assim como o incidente ocorrido lá é para o Brasil.

* Publicado em Zero Hora, 10 de fevereiro de 2009; debatido no programa Conversas Cruzadas, da TV Com, 10 de fevereiro, e no programa Polêmica, da Rádio Gaúcha, 11 de fevereiro de 2009.

Longa vida ao jornal!


O fim do jornal diário e em papel vem sendo anunciado nos Estados Unidos ao longo da década. Em 2004, o professor Philip Meyer previu que em 2043 ele morreria. Em 2006, a revista The Economist perguntou: quem matou o jornal? No ano seguinte, Arthur Sulzberger Jr., editor do New York Times, disse não saber se em cinco anos a publicação continuaria a ser impressa. No ano passado, foi a revista New Yorker quem proclamou que os jornais estão morrendo.

A informação em tempo real na rede mundial de computadores seria a responsável por essa extinção. O raciocínio é claro. É difícil crer que a geração da internet, tendo dispositivos portáteis que permitem acessar vídeos e textos em qualquer lugar, leia um jornal impresso.

No entanto, a realidade no Brasil e no mundo indica que há certa precipitação e exagero nessas profecias apocalípticas. Os jornais brasileiros encerraram 2008 com uma circulação 5% maior, passando de 4,14 para 4,35 milhões de exemplares pagos. O crescimento nas vendas em 2007 e 2006 já havia sido de 11,8% e 6,5%. E a média mundial também tem subido mesmo que com índices menores.

A partir desses resultados, nota-se que a questão mais atual a ser respondida diz respeito às razões que fazem o jornal manter sua força a despeito da lógica da era digital. Em termos tecnológicos, uma delas é antiguíssima: o papel. Hoje em dia é possível ir à beira da praia, deitar no sofá ou andar de ônibus acompanhando as notícias em um computador portátil. Porém, fora o desconforto visual proporcionado pela tela, ele não pode ser exposto à água ou areia. Quedas nem pensar. Ser dobrado a um tamanho adequado menos ainda. Assim, o papel continua sendo uma solução melhor. Em nível comercial, não há o que supere a sua praticidade. E seu valor econômico é ínfimo para o usuário. Por exemplo, a perda de um jornal nem se aproxima da preocupação de quem tem um celular roubado.

Outro aspecto que tem contribuído para o fortalecimento do veículo são as edições populares a um preço menor para o leitor. Além disso, como na frase atribuída a Keynes, no longo prazo todos estarão mortos. Logo, discutir circunstâncias de 2043 deveria ser menos importante do que a verificação das transformações que estão permitindo que a imprensa escrita seja uma opção contemporânea. No geral, os jornais diários ainda são portais de informação melhores e mais organizados dos que os da internet, tornando-se pontos de partida para aprofundamento na rede de computadores. Não há antagonismo, mas complementação.

É possível que um dia os jornais impressos sejam superados por algum avanço tecnológico, mas isso está mais longe do que se prevê. Por enquanto, como se costuma dizer sobre os reis, se o jornal está morto, longa vida ao jornal!

* Publicado no Agora de Rio Grande, 10 de fevereiro, na Gazeta do Sul e em O Informativo do Vale, 11 de fevereiro, em O Nacional, 13 de fevereiro, e no Diário de Canoas, 23 de fevereiro de 2009.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Salvem os banheiros públicos


Ensinam os especialistas em marketing que o banheiro não é razão para alguém escolher um lugar para ir, mas encontrar um toalete sujo é o suficiente para uma pessoa nunca mais voltar a um estabelecimento. Nesse sentido, sanitários públicos poderiam ser indicadores da capacidade de recepcionar turistas. Veja por exemplo Gramado, referência para aqueles que visitam o Rio Grande do Sul a lazer. Alguém já ouviu reclamação quanto aos banheiros de lá? Pelo contrário, o asseio é uma de suas marcas, assim como o respeito à faixa de pedestres, para citar outro sinal de civilidade presente na serra gaúcha.

No entanto, constata-se que latrinas limpas são espécies raras em outras cidades turísticas do Estado. É o caso de Capão da Canoa, município do litoral norte que desde 2008 se tornou símbolo da preservação ambiental por causa de suas corujas. Sob o ponto de vista estatístico, tende a zero a possibilidade de encontrar-se um banheiro apropriado para o uso na orla. Incluem-se aí os equipamentos móveis denominados ecológicos. O irônico é que quem ousa abrir a porta de qualquer um deles pode pensar que armas proibidas até em guerras chegaram aqui ao ser atingido por odores pútridos e pelo visual grotesco.

Pode-se alegar que ao menos existem esses banheiros. Antes disso - tentando evitar a escatologia - dir-se-ia que o “número um” era reservado para o mar e o “número dois” para os cômoros. Apesar de ecologicamente errado, duvida-se que a primeira alternativa tenha terminado e a segunda só acabou porque esse local está em extinção. E talvez essa fosse ainda uma opção mais tolerável para a integridade do cidadão do que entrar nos sanitários móveis de hoje. Será essa outra razão para Fepam lutar pela recuperação das dunas?

Por outro lado, haverá quem diga que dada a característica do que se faz nas latrinas de modo corrente é natural que o resultado seja desagradável. Concorda-se, mas água, sabão e desinfetante de vez em quando poderiam amenizar essa situação. A questão é que, como tudo na vida, bastaria um pouco de boa vontade para melhorar isso. Gramado consegue, por que Capão não? As corujas já garantiram seu espaço. Agora, salvem os banheiros públicos. A natureza humana vai agradecer.

* Publicado em A Razão, 05 de fevereiro, na Gazeta do Sul, 07 de fevereiro, no Diário Popular de Pelotas, 10 de fevereiro, em O Correio de Cachoeira do Sul, 12 de fevereiro, e no Diário de Canoas, 13 de fevereiro de 2009.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Faixas, fontes e futilidades


Para quem não acompanha o noticiário porque lhe causa azia, informa-se que o começo de 2009 foi marcado por uma guerra. Aliás, muitas. Mas foi o conflito na Faixa de Gaza que mobilizou as atenções globais. Pessoas morreram lá. Crianças. Porém, também morrem ali na esquina e não há luta armada aqui, ao menos declarada. Coisas gravíssimas podem ocorrer em qualquer lugar. No entanto, existe gente que não se sente afetada por isso. Para essa turma interessam os pequenos problemas, as futilidades.

Em Porto Alegre, por exemplo, um chafariz é a causa de discórdia. Presente de espanhóis para o Estado pelo centenário da Revolução Farroupilha em 1935, a Fonte Talavera estava danificada desde 2005. Três anos depois eis que ela ressurge restaurada com uma configuração diferente. O formato de taça de champanhe virou cálice de vinho. Na base apareceu uma faixa azul que não era vista antes. Pronta a celeuma.

É óbvio que houve desleixo ao recuperar-se o chafariz assim, começando pela justificativa surreal. Não se conseguiu reconstruir o monumento com a forma de taça. Ou seja, a tecnologia do século 21 não é capaz de refazer o produzido há 73 anos. Constata-se então que a nova Fonte Talavera já não é mais a doação de 1935, logo não tem o valor histórico, cultural e artístico da original.

O caso é tão grave que é possível que a Fenachamp de Garibaldi alegue um favorecimento à Fenavinho de Bento. E a direção do Inter deveria exigir a inclusão de uma faixa vermelha nomonumento, neutralizando a influência ideológica que só pode ter partido do prefeito Fogaça e do vice Fortunati, ambos conselheiros gremistas.

Enquanto isso, pessoas choram mortes em Gaza. Crianças. E também choram ali na esquina.

Pois tem mais. O 56º Congresso Tradicionalista Gaúcho, ocorrido em Canguçu, foi mais longe no debate de futilidades. Folcloristas pacificaram outra fonte de cizânia: a roupa da prenda. Após uma discussão entusiasmada, concluíram que a mulher gaúcha pode usar roupas de montaria ou bombachas femininas, mas traje de gala é vestido. Aquele com faixas, fitas e babados. Depois ficam bravos com as brincadeiras do Casseta e Planeta.

E crianças continuam morrendo. Em Gaza e ali na esquina. Haja antiácido.

* Publicado no Diário de Canoas, 27 de janeiro, na Gazeta do Sul, 29 de janeiro, e em O Correio de Cachoeira do Sul, 04 de fevereiro de 2009.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Crocodilos não são a solução


Venha morar com a tranquilidade proporcionada por um sistema de segurança total: exército particular, ponte levadiça, caldeirões com óleo fervente e fosso com crocodilos. Esse poderia ser o anúncio de um imóvel na Idade Média, mas os lares de hoje não são muito diferentes, verdadeiras fortalezas protegidas por vigilantes, guaritas, câmeras e cercas eletrificadas. Só faltam os répteis.

No entanto, como nos tempos em que os bárbaros se lançavam contra reis aquartelados, vem crescendo uma modalidade de delito: o arrastão em condomínios de luxo. Esse fenômeno talvez possa ser explicado a partir de observações sobre as relações entre o espaço urbano e a criminalidade.

A fragilidade verificada em complexos residenciais fechados resulta das características desses empreendimentos. Com o objetivo de afastar-se da violência das ruas, essas áreas costumam ser construídas envoltas por muralhas, localizando-se em bairros com baixa densidade demográfica. A aparente proteção intramuros provoca a insegurança no lado de fora, já que as vias externas são pouco movimentadas e não se tem a visão desses acessos a partir do interior.

Logo, a ação para os delinquentes se resume a um conflito bélico entre eles, motivados e dispostos a tudo, e o exército particular do complexo, em geral desorganizado e descomprometido. E cada vez mais se tem notícia desse tipo de crime.

Especialistas se apressam em ditar recomendações, quase todas relativas à conscientização dos moradores para que esses obedeçam a regras marciais de comportamento. Todavia, isso não irá resolver as questões estruturais que afetam os condomínios fechados.

Na realidade, é necessária a revisão dessa opção urbanística, apostando-se em alternativas para que toda a sociedade desfrute de um ambiente protegido e não apenas alguns grupos encastelados. Sob o ponto de vista da segurança pública, o ideal é impulsionar atividades que gerem circulação de pedestres e veículos, aumentar a densidade de edificações e combinar espaços públicos residenciais e comerciais dentro de um mesmo bairro. Ou seja, é preciso estimular que as pessoas convivam mais entre si, pois não são grades que podem acabar com o problema. E, definitivamente, crocodilos não são a solução.

* Publicado em Zero Hora, 23 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sobre gastos públicos e mitos


Não resta dúvida de que o dinheiro dos contribuintes brasileiros costuma ser mal gasto. Por vezes, um investimento vira uma ponte ligando nada a lugar nenhum. No entanto, essa situação já foi pior. As atuais administrações tendem a ser melhores do que as que criaram essa imagem. Por isso, é preciso desfazer alguns mitos sobre os dispêndios do erário.

O primeiro deles diz respeito às despesas com pessoal. Diz a lenda que houve um tempo em que um semianalfabeto entrava como contínuo no serviço público e se jubilava com proventos de marajá. Após a Constituição de 88 e a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que sobrou são funcionários concursados, muitos pós-graduados, a maioria ganhando pouco. Hoje, alguém de poucas letras só repete a trajetória mítica elegendo-se ou assessorando algum parlamentar.

Outra alegoria é a do gasto com inativos. Dizem que ele é crescente e, em alguns casos, maior do que o com servidores em atividade. Isso é parte da verdade. Falta explicar que nessas situações, em geral, há defasagem nos quadros de pessoal. A matemática não mente. Quando o número de ativos diminui com aposentadorias e não é reposto, um dos lados aumentará e o outro reduzirá. O resto é mito.

Agora surgiu uma nova fábula. Estudo recente do Ipea constatou a elevação do custeio e a diminuição dos investimentos. Exceções à parte, é necessário entender o significado disso na prática. Imagine dois municípios. Em um deles se construiu um ótimo hospital com equipamentos avançados, compensando-se o alto investimento com corte nos gastos em suprimentos, limpeza e conservação. O salário dos médicos é baixo - só despreparados aceitam o emprego. No outro a política foi a de pagar bem aos servidores para poder contratar os melhores. Eles atuam em um prédio antigo, com aparelhos antiquados, porém há manutenção e disponibilidade de material.

Qual dos dois você escolheria para cuidar da sua saúde? Se no segundo, sua opção é por pouco investimento e muita despesa com pessoal e custeio.

O ideal é também ter o hospital novo, porém essa utopia fica cada vez mais distante quando a remuneração e os recursos materiais são tratados como desperdício. Sem profissionais e condições de trabalho, os serviços que restarão para população são o nada e o lugar nenhum. Ah, mas vai sobrar dinheiro para as pontes.

* Publicado no Diário de Canoas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 21 de janeiro, em A Razão, 23 de janeiro, na Gazeta do Sul, 26 de janeiro, e no Jornal NH, 26 de fevereiro de 2009.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Sucessão de Lula, seu nome será Dilema


Lula escolheu Dilma Rousseff como sua sucessora. E o Partido dos Trabalhadores? Já engoliu essa decisão? Em tempos de (des)acordo ortográfico, é curioso que a diferença entre o nome da titular da Casa Civil e a palavra dilema seja tão pequena. Pois, no estudo da lógica, esse termo significa um problema com mais de uma solução, sendo nenhuma aceitável ao mesmo instante para todas as partes envolvidas. Dilma candidata pode ser penoso para o PT. Porém, outra indicação do partido seria embaraçosa para o presidente.

Antes da eleição de Lula, encontrar o seu sucessor já era uma questão difícil no PT. José Dirceu foi quem chegou mais perto disso. A queda dele aumentou a interrogação. Então, Dilma herdou tudo. O cargo e o futuro que eram de Dirceu. Mas, ao contrário dele, ela é uma alienígena no núcleo que construiu o projeto de poder do partido.

Por outro lado, quando se trata da trajetória política da ministra-chefe, é preciso considerar que ela não costuma deixar-se abater por dificuldades de qualquer natureza. Pelo contrário, todos os obstáculos na sua vida têm sido superados com uma postura firme. Por exemplo, no ano passado, em seu pior momento no governo, durante seção de uma comissão do Senado, confrontada por Agripino Maia sobre as mentiras que utilizou em seus dias de guerrilheira, ela conseguiu com uma inusual emoção dar a volta no senador.

Posto esse cenário, conclui-se que tempos interessantes vêm por aí. Luiz Inácio sempre teve o dom da palavra, da conversa e da metamorfose, evoluindo de sapo barbudo a "Lulinha Paz e Amor". Com seu estilo que mistura o estereótipo de sargentão com o de tecnocrata insensível, Dilma é a antítese dele. Se a alcunhada "mãe do PAC" deseja ser uma legítima herdeira política do presidente deve saber que terá pouco mais de um ano para aprender o que Lula levou vários. Isso sem que ela se torne artificial, o que criaria mais um dilema.

Sem tempo a perder, a chefe da Casa Civil já tomou a primeira medida. Uma cirurgia plástica para suavizar seu semblante de pedra, tentando torná-lo, senão bonito, ao menos simpático. No entanto, pelo que se sabe a medicina ainda não consegue intervir com a mesma eficácia em outra necessidade que a ministra vai ter, a de amenizar o seu espírito para enfrentar cumprimentos, beijos, abraços e as demais peculiaridades das campanhas eleitorais. Ou se encara isso com um sorriso ou é melhor desistir. Como todo candidato, desse dilema ela também não poderá escapar.

* Publicado em O Globo Online, 13 de janeiro, no Diário Popular de Pelotas e em O Correio de Cachoeira do Sul, 15 de janeiro, em A Razão, 16 de janeiro, na Gazeta do Sul, 17 de janeiro, e no Diário de Canoas, 03 de fevereiro de 2009.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Pausa para sonhar


Dia da coleta de lixo seco. Um homem e sua filha se apressam para recolher latas de alumínio antes que o caminhão da prefeitura leve embora o ganha-pão deles. É um trabalho que costuma ter surpresas. Em uma dessas, a menina encontra um controle quebrado de videogame. O artefato com alavancas e botões coloridos recebe a sua atenção. Por um momento, ela senta na beira da calçada e se dá o direito de admirar aquele objeto.

Do ponto de vista eletrônico, o controle é inútil, mas a garota não se importa. Ela mexe nas teclas como se algo estivesse em funcionamento. De forma lúdica, aquela peça plástica torna viáveis as fantasias da filha do catador, transportando-a para lugares sobre os quais só é possível fazer suposições.

Em quais jogos ela estará envolvida agora? O da princesa guerreira que enfrenta dragões? O da heroína intergaláctica que elimina alienígenas? O da policial que persegue facínoras? Isso se os desejos dela se restringirem a fazer parte da lógica dos videogames.

Talvez a jovem esteja longe dessas ficções, viajando entre as próprias ilusões. Enquanto movimenta as alavancas, pequenas varinhas de condão, ela sonha acordada em ser alguma das cinderelas atuais. A mocinha da novela ou a ganhadora da loteria. A apresentadora do telejornal ou a cantora baiana. A gata do Big Brother ou a modelo internacional.

Ainda no campo das conjecturas, quem sabe a menina, ao apertar os botões, queira abrir portais para outros mundos. Em um universo alternativo, ela seria a filha de um técnico em reciclagem que recebe um salário justo para o sustento familiar. Ela estaria estudando de manhã e à tarde em uma escola pública de qualidade, preparando-se para entrar em uma faculdade com todas as perspectivas de futuro pela frente: ser médica, engenheira, jornalista.

De repente, palavras ásperas do pai interrompem os devaneios da garota. Levanta. Vamos trabalhar. Temos pouco tempo até o caminhão chegar. Despertada para a realidade, ela hesita entre guardar o controle e deixá-lo ali, já que não tem valor comercial. Resolve colocá-lo em um canto do carrinho do pai. Quem sabe, mais tarde, ela o acione, tendo outra vez uma pausa para sonhar. Enquanto isso, a jovem volta ao jogo da vida em que cada latinha juntada representa um pouco mais de comida na mesa. E no qual perder é muito mais do que o “game over” na tela.

* Publicado em O Informativo do Vale, 12 de janeiro, na Gazeta do Sul, 13 de janeiro, e no Jornal NH, 20 de fevereiro de 2009.