terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O lixo é nosso!

Anos 70. Crise do petróleo, desigualdade social, estatais. A Lixobrás já estava lá. Com as privatizações, má distribuição de renda, declínio da educação, na década de 90 essa empresa brasileira se expandiu. Atualmente suas ações estão em alta.

Com exceção do nome irônico, a indústria nacional do lixo reciclado sempre existiu como uma imensa sociedade anônima com capital constituído pelo trabalho dos catadores. Seus dividendos às vezes são bolsas-família. Bolsa de poucos valores, mas com resultados no balanço social.

A reciclagem é o negócio do futuro. Sua matéria-prima é renovável. Ecologicamente correta, contribui mais do que os créditos de carbono. Papel reaproveitado evita desmatamento. Plásticos, metais e vidros recuperados preservam recursos minerais. Seus produtos asseiam o mundo.

Entulho é gerador de trabalho e renda onde não há salário e ocupação para todos. E o lixo fomenta empregos indiretos. Movimenta a economia ao permitir que seus empreendedores possam comer.

A falta de oportunidades leva à opção crescente por esse modo de vida. A disputa pelo que é descartado aumenta. A batalha é rua a rua, saco a saco. Cada lata recolhida a mais pode valer um copo de leite. Cada garrafa juntada, um pedaço de pão. Cada jornal carregado, um par de chinelos.

Enquanto aqui a competição é acirrada, a cidade de Nápoles não sabe o que fazer com 100 mil toneladas de detritos acumulados. Invertendo a lógica, seria possível importar o lixo da Itália como matéria bruta, reciclá-lo e exportá-lo como artigos industrializados.

Por outro lado, se no passado foram os italianos que vieram para o Brasil para serem mão-de-obra na produção primária, agora são os brasileiros que poderiam ir para lá fazer o literal serviço sujo. Depois dos jogadores de futebol, seria a vez do êxodo dos catadores. Nesse campo também somos campeões mundiais. Na reciclagem de alumínio.

Hoje, o problema de Nápoles. Amanhã, o do mundo. O nosso país pode resolver isso. Os especialistas em viver das sobras estão aqui. Eles fazem da Lixobrás uma realidade. O lixo é nosso. O futuro, deles.

* Publicado no Diário de Canoas e no Jornal VS, 26 de fevereiro, em O Informativo do Vale, 27 de fevereiro, e na Gazeta do Sul, 13 de março de 2008.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Escolhe, pois, qual vida?

Em 1988, quando fiz vestibular, preparar-se para a redação era saber dissertar sobre matérias polêmicas como pena de morte, eutanásia e aborto. Duas décadas depois, essas questões continuam em debate, em especial, após a definição do tema da Campanha da Fraternidade de 2008. Com o lema "escolhe, pois, a vida", retirado do quinto livro da Bíblia, o Deuteronômio, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem o mérito de manter a defesa da vida em evidência, apesar de reafirmar dogmas e não abrir exceções.

Para nós mortais, esses assuntos ainda geram dúvidas hoje e, provavelmente, sempre. De acordo com as pesquisas de opinião, a violência e a criminalidade seriam a justificativa para o apoio da maioria da população brasileira à pena de morte. No próprio Deuteronômio, que apresenta os preceitos judiciais a serem utilizados na Terra Prometida, há a orientação: "vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé". Mas como aceitar a pena capital sabendo que não existe sistema infalível? Quantos inocentes pagam pelos crimes de outros?

Na eutanásia, boa morte em grego, os argumentos a favor são de que a prática evita dor e sofrimento de enfermos que já não têm qualidade de vida. Os contras reúnem, além da posição religiosa, aspectos da ética médica e princípios legais. O teor dessa discussão gira em torno de um contexto social. O que é mais civilizado? A compaixão a um indivíduo ou a garantia coletiva de ordem social baseada em um denominador moral?

E o aborto? De um lado, o direito da mulher em relação ao seu corpo, a necessidade da concepção responsável para garantir proteção à infância e as mortes resultantes de complicações em procedimentos ilícitos. De outro, uma ecografia de doze semanas de gestação em que já se pode ver um ser humano formado, com braços e pernas, mãos e pés, com vontade própria, que abre e fecha a boca e dá até cambalhotas.

Escolhe, pois, qual vida? A de quem tira a de outros? A do que vegeta porque a medicina avançou ao ponto de máquinas conservarem pulsando o coração que já não é capaz de fazer isso? A do que está fadado a ser marginalizado, excluído, sem família, educação e saúde? Para quem está longe dos dogmas e próximo da capacidade de questionar-se, não há respostas simples. Nunca houve. Seja em 1988 ou 2008. Nem vai haver. Em 2028, quem viver ainda debaterá.

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 16 de fevereiro, e no Diário de Canoas, 18 de fevereiro de 2008.

Cartão extraviado

Certa vez li uma reportagem sobre jovens e o dinheiro. Uma estudante disse entender que o cartão de crédito da família era algo que vinha do governo, podendo ser gasto à vontade. Não sei medir se era alienação ou piada. Só sei que a compreensão que a garota tinha da situação financeira dos seus pais é a mesma da ex-ministra da Igualdade Racial em relação aos cofres do seu país.

Matilde Ribeiro foi a primeira a ser expiada pelo abuso dos cartões no governo federal. Porém, as evidências revelam que ela apenas cumpriu a sua missão. Matilde agiu igual a qualquer outro da raça humana com créditos ilimitados. Aliás, ela empregou de forma semelhante uma das duas desculpas em voga. Consumiu R$ 171 mil e declarou que não sabia como usar o cartão. Nem imagino quanto ela teria gasto se soubesse utilizá-lo. A outra opção era dizer que só fez o que todos fazem. Seria mais verossímil, mas igualmente reprovável.

Matilde não pode ser a única a sair. Seus gastos são trocados perto do volume de saques em dinheiro feitos em 2007. Foram cerca de R$ 45 milhões em retiradas, mais da metade do dispêndio total.

Hoje, a tecnologia do crédito eletrônico está até nas mais prosaicas e distantes localidades. Nem toda transação que só ocorre em espécie é ilícita, mas quase todas as que são precisam de grana viva, tais como as que envolvem pirataria, jogo do bicho, drogas, armas ilegais, lavagem de dinheiro, prostituição e propina. Muitos devem ter sacado apenas para ter algum no bolso, comprar cigarros ou chicletes. No entanto, investigar é necessário.

Assim, fica muito difícil não ter a sensação de que há desvios de nossos tributos. Já tive uma experiência parecida. Extraviaram um cartão que não solicitei. Pior, utilizaram todo o meu crédito. Perdi tempo e paciência tentando provar que não pedi, não recebi e não usei o tal cartão. Essa é a frustração que sinto agora.

Por acaso alguém sabe qual é o telefone 0800 para abrir um protocolo de reclamação contra a farra dos cartões? Conheço a resposta. São os números que vou digitar quando tiver acesso a uma urna eletrônica.

* Publicado no Diário de Santa Maria, 18 e 25 de fevereiro de 2008.

Maravilhas da democracia

A Mulher Maravilha na capa da Playboy é uma das polêmicas da vez nos Estados Unidos. Uma modelo com o uniforme pintado sobre o corpo interpreta a personagem. A discussão gira em torno do significado dessa presença em uma revista erótica. Alguns vêem o fato como um retrocesso para as conquistas femininas. Outros só enxergam a publicação fazendo o que sabe: instigar os fetiches do seu público.

Pela ótica do primeiro grupo, a heroína é um ícone de emancipação, exemplo de força e independência. Logo, há indignação com o uso dela como objeto sexual. Chega-se ao exagero de classificar a opção por uma personagem com as cores da bandeira americana como uma tentativa de atingir Hillary Clinton, representante feminina na corrida presidencial.

Essa apreciação conspiratória ganha corpo porque vai ao encontro das escolhas editoriais da revista e seu hábito de chamar atenção com a exposição das mulheres mais debatidas e badaladas. Vide o Brasil e a recente edição com Mônica Veloso, ex-amante do então presidente do Senado.

Seguindo essa linha erótico-política, pode-se até especular a respeito de quem vai ficar nua para representar o escândalo dos cartões corporativos. Na impossibilidade de serem Matilde Ribeiro, ex-ministra da Igualdade Racial, que já foi despida de seu cargo, ou Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil, que não teve pudores na defesa do governo, Viviane Castro surge como candidata.

A moça do mais ínfimo protetor de genitália do Carnaval 2008 já está desnuda no sítio virtual de uma concorrente, a revista Sexy. No entanto, bem que ela poderia fazer um novo ensaio como musa da folia dos cartões. A chamada de capa seria "quanto menor o tapa-sexo, maior a transparência". Viviane faria algumas fotos com um cartão de crédito como adereço, mostrando que, mesmo com o dobro do tamanho do controverso adorno que ela "vestiu" no sambódromo carioca, pode não haver cobertura para quem o utiliza. E no pôster central o título diria: "Quebra de sigilo do portal mais comentado do país".

Polêmicas e paranóias à parte, tanto aqui quanto nos Estados Unidos, uma das maravilhas da democracia é o direito de opinião e de informação. Seja a respeito do que for. De mulheres peladas aos gastos do governo. Essa é a verdadeira segurança de uma nação.

* Publicado em Zero Hora, 14 de fevereiro de 2008.

Um ano com João Hélio

No dia sete de fevereiro de 2007, um assalto terminou com a morte de um menino de seis anos no Rio de Janeiro. No momento do ataque, ele estava com a mãe no carro. Ela não conseguia retirá-lo e o cinto do banco traseiro ainda o prendia quando um dos criminosos assumiu a direção e acelerou, arrastando o menino por sete quilômetros. A vítima era João Hélio Fernandes.

Há um ano essa crueldade chocava o país. Como de regra, seu primeiro efeito foi o clamor por um maior rigor das autoridades. Prender mais gente, aumentar penas, construir prisões. Soluções necessárias, porém paliativas.

De forma complementar, outros enfoques podem ser analisados. Criminalidade é uma reação a exclusões aceitas ou impostas. Violência é uma seqüela das desigualdades vigentes, sejam quais forem. “De um lado esse carnaval/De outro a fome total”, nas palavras de Gilberto Gil. Algumas dívidas históricas, outras recentes. Salário mínimo e mensalão, por exemplo.

Como lembraria a mãe de João Hélio em entrevista, ele estava feliz porque ia ter uma suíte própria, decorada com personagens do desenho animado Laboratório de Dexter. Já seus assassinos se pareciam com outros que lotam os presídios, forjados pela infância sem proteção, adolescência sem limites e vida sem perspectivas, que independe de classe social ou cor da pele.

Nenhum latrocínio se justifica por diferenças como as existentes entre João e seus algozes. Elas são apenas outras faces dessa barbárie. Se o fato de até um Laboratório de Dexter estar nas expectativas de João Hélio ou seus assassinos terem pouco a perder contribuiu para essa situação, não se pode descartar a hipótese de que o menino ainda estaria vivo se a realidade da suíte decorada fosse a de todos. Se não ela, pelo menos uma com proteção, limites e perspectivas adequadas.

A despeito disso, os jovens que mataram João ainda precisam ser punidos. No último dia 30 de janeiro, quatro acusados desse crime hediondo foram condenados em primeira instância, com penas entre 39 e 45 anos de reclusão. O quinto participante é menor de idade e cumpre desde março internação de três anos, o máximo permitido. No século XIII, São Tomás de Aquino já afirmava em sua Suma Teológica que “justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido”. É o que se esperaria, em qualquer sentido, após um ano com João Hélio em nossas consciências.

* Publicado em O Globo Online, 07 de fevereiro, e na Gazeta do Sul, 09 de fevereiro de 2008.

Trânsito de Elite

Ao entrar no seu carro, pense que você está recebendo uma granada sem pino das mãos do Capitão Nascimento. A cena extraída do filme “Tropa de Elite” apresenta o heterodoxo recurso didático utilizado pelo personagem de Wagner Moura para obter atenção total do aspirante zero-cinco. A idéia é aproveitar essa e outras imagens que invadiram o cotidiano nacional com o sucesso cinematográfico de 2007 para falar de trânsito.

A mensagem da granada sem pino é de alto impacto. Se não for contida com cuidado, ela detona você, levando junto os que estiverem ao seu lado e outros mais. Numa situação como essa não se abusa da velocidade, não se bebe, não se viaja com sono, sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança. Com um explosivo entre os dedos, jamais.

Um automóvel deve ser conduzido da mesma forma. Evite que seu carro se transforme num artefato bélico. Você não deseja ser conhecido como mais um número na guerra do trânsito. No Rio Grande do Sul, foram 35 mortes no último Natal e 26 na virada do ano. No próximo feriadão e sempre, contamos com você para não aumentar esta estatística. Aqui não dá para colocar na conta do Papa. Sua família é que conta.

Um trânsito de elite passa por você e por todo o sistema. É o resultado da atuação de múltiplos atores sociais: poder público, comunidade, empresariado, igreja, escola e família. Representa estradas duplicadas, sinalizadas e fiscalizadas, vias conservadas, automóveis seguros, transporte público adequado, tolerância com o próximo, informação e conhecimento, ética e menos impunidade e violência. Você é protagonista nessa história, astro principal da sua vida, autor do roteiro que escolher para seguir. Seja qual for a direção e o sentido, que esteja dentro dos limites de velocidade. Cuidado para não queimar o filme.

Adaptando o vocabulário empregado na obra do diretor José Padilha, saiba que você é o xerife de seus atos. Não seja um fanfarrão. Peça para sair do volante, se for o caso. Não seja moleque. Não vire caveira. Ou vai ser sua família a vestir roupa preta. Não dê bobeira, não. Chega de o trânsito ser osso duro de roer. De pegar um, de pegar geral. Ou ele também vai pegar você.

* Publicado na Gazeta do Sul, 26 de janeiro, em Zero Hora, 28 de janeiro, e em O Globo Online, 31 de janeiro de 2008.

Um ser humano para presidente

Hillary Clinton e Barack Obama são os favoritos do momento para a presidência dos Estados Unidos. Em outras palavras, a Casa Branca poderá ser comandada pela primeira vez por uma mulher ou por um negro. A situação em si é suficiente para todo tipo de análise.

Esse artigo não é diferente. Só que aqui se aproxima o tema para essa aldeia chamada Rio Grande do Sul. Nosso Obama foi Alceu Collares. Em 1990, os gaúchos elegeram o primeiro negro governador do estado mais “branco” do Brasil. Dezesseis anos depois, chegou a vez da nossa Hillary, Yeda Crusius, ser governadora do estado mais “machista” do país.

Na lógica gaúcha, poderia se dizer que quase duas décadas separaram a aceitação a um negro em relação a uma mulher. Na América, caso um dos dois venha a ser presidente, não se fugirá de alguma sentença. Obama chegou a Casa Branca porque se aprova até um negro presidente, menos uma mulher. Ou, Hillary venceu porque se admite até uma mulher comandante-em-chefe, menos um negro. Pior se nenhum dos dois for eleito, parecerá que o modelo branco, anglo-saxão e protestante ainda impera na terra dos livres e lar dos bravos.

Collares, Yeda, Obama, Hillary, ao serem tratados pelo seu gênero ou pela sua etnia, inclusive pelo articulista, denotam que se levará algum tempo até que se enxergue que eles chegaram ou chegarão “lá” por suas qualidades e defeitos como seres humanos. Aliás, Obama não é apenas um afro-americano oprimido com porões de navios negreiros na sua árvore genealógica. Ele tem também descendência e parentes quenianos. É filho de um imigrante livre que foi estudar na América. Hillary, antes de ser apenas “mulher”, é ex-primeira-dama de um dos mais populares presidentes americanos e vítima de um dos mais rumorosos casos de infidelidade conjugal. E ainda dizem que foram as suas lágrimas femininas (ou seriam humanas?) que fizeram ela se recuperar nas primárias de New Hampshire.

Essa disputa ainda levará alguns meses e outras análises serão feitas. Nós, gaúchos, ficaremos na expectativa para saber se os norte-americanos alcançarão o mesmo grau de evolução quando se trata de lidar com preconceitos, enquanto o mundo vai esperar mais lágrimas de Hillary, de alegria ou de tristeza. Afinal, mulher tem que chorar, né? Ou não?

* Publicado em Zero Hora, 15 de janeiro de 2008.