terça-feira, 29 de julho de 2008

Os mais despreparados

Em episódios recentes, policiais do Rio de Janeiro assassinaram cidadãos inocentes – um estudante, um menino de três anos e um administrador. PMs do Paraná nesse período tiraram a vida de uma jovem. No último dia 18, a polícia vitimou uma menina de nove anos em Recife. Fatos de destaque na mídia que talvez não tenham sido os únicos dessa natureza. E é possível que entre a produção desse artigo e a sua publicação outros mais ocorram.

Polícia que mata é um problema antigo (vide o livro "Rota 66", de Caco Barcellos, por exemplo) que a consolidação do Estado Democrático de Direito possibilita que seja cada vez mais denunciado e apurado. Nesses casos, políticos costumam ser ágeis em adjetivar os policiais como "mal preparados", para dizer o mínimo. Uma qualificação mais do que justa.

No entanto, quando repetidamente agentes da Lei ceifam vidas, a incompetência costuma estar entre aqueles que têm o poder da caneta para distribuir armas e insígnias. Como se diz no futebol, jogador ruim não tem culpa de ser escalado. A responsabilidade é de quem o contrata.

Em diversos estados da Federação, a explicação para o despreparo policial está na ausência de diretrizes para formação e atualização. O ciclo se dá assim: primeiro permite-se que o efetivo se reduza até níveis de quase inoperância. Como paliativo, contrata-se em grande quantidade. Pela necessidade de que os novos agentes estejam logo nas ruas, abrevia-se a preparação. Além do tempo curto de orientação, o número elevado de alunos afeta a qualidade do treinamento. E o critério de escolha dos instrutores não é só o do conhecimento, às vezes apenas encontrado fora da Corporação, mas também o da complementação de renda dos colegas com o pagamento de horas-aula.

Colocado o policial em serviço, nunca mais ele volta à academia para reciclar procedimentos, porque sempre falta pessoal e ninguém pode ser tirado do trabalho. Como resultado, produz-se agentes mais sujeitos a cometer erros e matar inocentes. Para completar, aqueles que deveriam formular as políticas de qualificação desses servidores vão aos microfones chamá-los de monstros.

Usando outra metáfora futebolística, se adjetivação ganhasse jogo, o campeonato entre "Aurélio" e "Houaiss" terminaria empatado. Então que denominação resta para quem toma as decisões que armam e fardam a polícia que mata? Afinal de contas, quem são os mais despreparados?

Aliás, quando se fala em meritocracia, o que se quer dizer é que os servidores precisam demonstrar qualificação nas suas atividades para justificarem os postos que ocupam. Logo o mesmo tem que valer para os responsáveis pelas políticas públicas. Na área da segurança esse seria ponto ideal para que os problemas comecem a ser resolvidos.

* Publicado na Gazeta do Sul e em O Globo Online, 29 de julho, no Diário de Canoas, 1° de agosto, no Jornal VS, 15 de agosto, e no Jornal NH, 25 de agosto de 2008.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Zumbis da inflação

Metáforas transferem significados a âmbitos distintos do original. No jornalismo, elas tendem a virar lugares-comuns. Leão do imposto de renda, elefante branco para obras públicas inacabadas, sanguessugas da saúde. E há o dragão da inflação. O gigantesco lagarto alado que cospe fogo representa a desproporção entre o aumento de preços e o poder de compra da população. Vivendo uma estabilidade econômica desde 1994, o Brasil acreditou que esse mito estava extinto. No entanto, este ano a inflação retornou acompanhada da velha metáfora.

Esta volta requer uma nova alegoria. O jornalismo como permanente representação da realidade social não deve atrelar-se a signos do passado. Nesse sentido, apresenta-se um símbolo contemporâneo: os zumbis. Personagens de um gênero da ficção de horror que está na moda, eles têm sido revitalizados na literatura e no cinema. Nas grandes cidades do mundo, jovens realizam caminhadas anuais para homenageá-los.

Basta uma descrição mais detalhada para que se vejam as semelhanças entre essas criaturas e a inflação. Para começar, nunca se sabe bem como surgem. Há apenas teorias. Elas eclodem por todas as partes com uma agressividade irracional e um apetite incontrolável. Como uma epidemia viral, transmitida de forma endêmica, o fenômeno se espalha na sociedade, devorando a todos, afetando raciocínios e gerando mais dele mesmo. Zumbis e a alta de preços se multiplicam com voracidade e sem racionalidade.

Tem mais. O fato de serem sempre em um maior número do que a população consegue encarar mantém a representação de desproporcionalidade como na metáfora antiga. Algumas vezes, cogita-se a possibilidade de domar as criaturas. Em outras, chega-se a imaginar que elas foram erradicadas. Aliás, mortos-vivos só morrem de verdade ao levar um tiro na cabeça (recordam-se do ex-presidente Collor e sua tentativa frustrada de acabar com a inflação com uma única "bala"?). A domesticação e a suposta extinção nunca funcionam. Isso é o que está acontecendo com o atual processo inflacionário. Logo, não é um dragão que estamos enfrentando. Preparem-se é para os zumbis da inflação. Eles é que estão nos assombrando por aí.

* Publicado em A Razão e em O Globo Online, 21 de julho, no Diário de Canoas, 25 de julho, Diário Popular de Pelotas, 27 de julho, e no A Notícia de Joinville, 28 de julho de 2008.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Se fosse um desses negrinhos

Se fosse ao menos um desses negrinhos fujões, desses que não conhecem o seu lugar, que vivem de roubar galinhas para não morrer de fome, ninguém teria reparado nele sendo levado a ferros para a senzala. Porém, quando se ficou sabendo que o “coroné” Ladine havia sido acorrentado e arrastado pelos grilhões para fora da casa-grande por um capitão-do-mato, os doutores, os nobres, a corte toda se quedou horrorizada. Quem que aquele empregadinho público de última categoria estava imaginando que era prendendo uma pessoa como aquela, oriunda das melhores cepas de nossa sociedade, a família d’Satan? Multiplicaram-se discursos repudiando o fato de que um homem de bem, um cidadão que produz riqueza para esse País, um personagem da nossa história, havia sido humilhado e tratado pela lei como se fosse igual aos demais.

Mas nada revoltou mais às altas rodas do que a informação de que o capitão havia recusado um conto de réis em ouro para fechar um olho para uma ou outra travessura do “coroné”. Nunca algum doutor ou nobre havia se negado por uma quantia dessas ou até menor, porque um conto é um conto, a atender a um pedido de tão distinta figura, de tão proeminente fidalgo. Um favor, uma benevolência, um singelo beija-mão. O que era isso perto do valor da amizade entre pares, freqüentadores dos mesmos salões, degustadores dos mesmos vinhos, aproveitadores da mesma bela vida?

E não foi só o ato da negativa ao valor em si que ofendeu a nobiliarquia. Ainda querem usar essa oferta quase impoluta, quase inocente, como arma para vilipendiar ainda mais a imagem de tão ilustre benfeitor, para dilapidar o patrimônio moral de tão notável compatriota. Isso não haveria de ficar assim. Que se acione o meritíssimo, o excelentíssimo ou, até, se preciso, o reverendíssimo, para livrar o “coroné” Ladine dessa condição ultrajante de ser mais um entre aqueles para quem as leis realmente foram feitas. Era preciso resolver tudo antes da aurora. Um d’Satan jamais haveria de ver o sol nascer quadrado. Onde essa gente pensa que está? Com quem eles julgam que estão tratando? Será que não se enxergam? É uma pouca vergonha. Se ao menos fosse um desses negrinhos...

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 16 de julho de 2008, e no Diário de Canoas, 17 de março de 2009.

terça-feira, 8 de julho de 2008

A outra metade

Pode virar lei. Só depende de sanção presidencial. Foi aprovado projeto que obriga rádios e televisões a reservarem espaço para no mínimo 50% de notícias positivas. A iniciativa é do Senado. Da Romênia. O país do Leste Europeu, que entre 1965 e 1989 viveu sob a ditadura de Nicolae Ceausescu, hoje é governado por uma maioria liberal liderada pelo Partido Democrata. Considerando isso, é irônica a opção pela censura, característica de regimes de exceção, ainda que disfarçada. Como outrora, quem mais vai definir o que é bom ou ruim senão os poderes de Estado?

Os romenos estão fazendo algo que outras democracias tentaram e não conseguiram. Em 2003, Lula declarou que "notícia é aquilo que não queremos que seja publicado, o resto é publicidade". No ano seguinte, encaminhou ao Congresso projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo para orientar, disciplinar e fiscalizar a atividade. Desistiu por causa da pressão social. No Brasil, se a quantidade de notícias amenas fosse colocada em discussão, era provável que fosse aprovado um percentual superior, vide a opção por extremos como no caso da tolerância zero aos motoristas que consomem bebidas alcoólicas. Aliás, por que não 100% de boas notícias?

Durante os governos militares, o jornal Estado de S. Paulo chegou a publicar receitas de bolo e trechos dos Lusíadas de Camões no espaço de matérias censuradas. Era o jeitinho jocoso e brasileiro de achar notícias positivas. Agora, imagine essa lei romena aplicada aqui em um dia ruim. Guerra do tráfico, mortes no trânsito, terremoto na Ásia. Isso sem falar de operações da Polícia Federal que os políticos envolvidos acharão negativas - até já houve tentativa de amordaçar a divulgação delas. Haja Nega Maluca. Ainda bem que a epopéia portuguesa tem 1.102 estrofes.

Outra estratégia viável é adotar o padrão do telejornalismo. Depois de mostrar as mazelas do mundo como uma realidade disseminada, para poder se desejar boa noite, encerra-se com uma reportagem mais agradável. O exemplo típico é o nascimento de um bebê panda. O problema aqui é a raridade do fato. Então, propõe-se uma série sobre o filhote: a primeira mamada, o primeiro banho, a primeira ida ao banheiro, etc.

O meio a meio romeno talvez deva exigir da imprensa de lá atitudes mais drásticas. Os programas precisam denunciar a restrição à liberdade de expressão durante metade do tempo. Depois, use-se a mudez como brado, a ausência de sons e imagens como protesto. A receita está nos primeiros versos do poema-canção Metade de Oswaldo Montenegro. "Que a força do medo que tenho / não me impeça de ver o que anseio / que a morte de tudo o que acredito / não me tape os ouvidos e a boca / pois metade de mim é o que eu grito / mas a outra metade é silêncio."

* Publicado em A Razão, 08 de julho, em O Nacional, 14 de julho, no Jornal VS, 22 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 24 de agosto, e no Jornal NH, 16 de setembro de 2008.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A melhor vacina

A vacina da febre amarela não imuniza contra a violência no trânsito. A frase é absurda, mas algo semelhante se encontra afixado em postos de saúde substituindo "violência no trânsito" por "dengue". O esclarecimento sobre as doenças pode parecer surreal, porém o equívoco se dá porque as duas enfermidades são transmitidas por mosquitos. O receio de contrair as moléstias e estar sujeito ao risco de mortalidade faz com que as pessoas acreditem que a cobertura contra um vírus sirva para o outro. Quando a vida está em perigo, buscam-se soluções.

Nesse ponto entra a violência no trânsito. O brasileiro, que tanto quer proteger sua saúde, é nada prevenido quando se trata de trafegar com veículos automotores. Esse contra-senso pode ser verificado nas estatísticas de cada "epidemia". O estado do Rio de Janeiro, com 15,4 milhões de habitantes até o último dia 25, havia registrado 142 mortes causadas pela dengue em 2008. No Rio Grande do Sul, onde a população é um terço menor e a doença não é endêmica, de acordo com o Mapa da Violência de 2008 dos Ministérios da Saúde e da Justiça, ocorrem 165,5 óbitos por acidentes de transporte em média a cada mês. Os cartazes nos postos de saúde são indicativos de que há muito medo da dengue, enquanto os números do trânsito apontam para uma sociedade imprudente.

Aproveitando o temor existente, algumas medidas de combate ao Aedes aegypti até poderiam ser adaptadas para aplacar a selvageria ao volante. O Ministério da Saúde pede que pneus velhos sejam entregues à limpeza urbana. Nos veículos, da mesma forma, lugar de rodado careca é no lixo. Para evitar acúmulo de água e proliferação de larvas, vasilhames vazios devem ficar de cabeça para baixo. E antes de dirigir não esvazie garrafas de bebidas alcoólicas. Quanto a plantas e jardins, para a proteção contra o mosquito, recomenda-se o uso de areia nos pratinhos dos vasos. Já a ferocidade nas vias públicas também pode resultar na utilização de terra. Para selar a sepultura da vítima.

Se na luta contra a dengue tomar todas as precauções é necessário, em relação à violência no trânsito é imprescindível. Para ambos os casos, a melhor vacina ainda é a prevenção. Ela pode imunizar contra muita dor e sofrimento.

* Publicado no Diário de Canoas, 02 de julho, em O Informativo do Vale, 07 de julho, e na Gazeta do Sul, 08 de julho de 2008.