quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O fim das receitas

A turbulência mundial originada no sistema financeiro dos Estados Unidos e dos principais países do Hemisfério Norte demonstra que não há receita infalível. Tio Sam acordou do sonho americano em pânico. O pesadelo que se instaurou nos mercados não estava previsto em livros, trabalhos acadêmicos, seminários ou relatórios. Dessa vez não teve Nostradamus nem Mãe Dináh para avisar. Adivinhe? Até os palpites dos videntes estão em baixa.

As fórmulas prontas vendidas pelos donos da banca ou não foram usadas por eles ou, o que é mais provável, não funcionam. De fato os banqueiros quanto mais poderosos são, mais perto de quebrarem e pedirem ajuda para o governo estão. Isso porque cada qual conduz seu negócio em direção ao ganho máximo como se não houvesse amanhã. E como na letra de Renato Russo, na verdade não está havendo. Aliás, como também não existiu para o império romano, napoleônico ou nazista. Isto é, não há estratégias ou prescrições que vençam e enganem a todos para sempre.

Ser sábio nesse momento é duvidar de que haja analista, professor, conferencista ou consultor que saiba realmente o que está acontecendo. Os historiadores em 2108 talvez falem com propriedade sobre os dias atuais. Mas a humanidade agora, apesar de toda tecnologia disponível e informação em tempo real, parece ter tanta consciência das verdadeiras causas da esculhambação globalizada quanto os ameríndios do século 15 tiveram da Queda de Constantinopla ou os aborígines australianos do século 18 sabiam da Tomada da Bastilha.

Os grandes jogadores do mercado têm revelado desconhecimento sobre como agir. Oscilam desgovernados das ações para o dólar, do ouro para o petróleo, de mercadoria em mercadoria. Conforme o enunciado de Lavoisier, se todos parecem estar perdendo, alguém em algum lugar deve estar lucrando. Bush apela para tudo. Até para pacote econômico. Fosse ele candidato já teria surgido o nome de algum extremista que de uma caverna oriental estaria desestabilizando o planeta com um telefone esperto na mão e a idéia de acabar com o Grande Satã na cabeça. Não sendo isso, essa será outra questão para ser respondida no futuro pelas bolsas ou pelos bolsos que sobrarem.

Quando o muro de Berlim foi à lona, decretou-se o fim da história. Seria agora o fim desse fim? O que parece estar acabando são as receitas. Então, por favor, chamem um outro doutor. Ou seria melhor um mago? Detalhes em breve em alguma publicação de auto-ajuda na banca mais próxima de você.

* Publicado na Gazeta do Sul, 30 de outubro, no Agora de Rio Grande, 07 e 18 de novembro de 2008, e no Diário de Canoas, 07 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Segurança pública não é espetáculo

Um rapaz armado mantém refém sua ex-namorada em uma grande cidade do interior de São Paulo. As câmeras só conseguem focar o local do cativeiro de longe. Mesmo assim, esse conflito é a razão de horas ininterruptas de cobertura jornalística em mais de um canal. Um drama tratado como um outro programa televisivo qualquer. No centro dos acontecimentos, os refletores estão todos sobre a segurança pública.

Hoje é o caso Eloá. Ontem, foi Isabella Nardoni. Amanhã, haverá outro enredo, mas não será a última trama a receber essa atenção. São os lares brasileiros sendo invadidos por fragmentos da criminalidade e por toda sensação de insegurança que eles proporcionam. Nos meios de comunicação, a qualquer hora, é possível saber da última barbárie perpetrada. Certo mesmo é a chacina, o seqüestro, o latrocínio que será sensacionalmente divulgado no jornal das oito.

Não se pode brigar com as notícias. Elas precisam chegar aos espectadores. Há a liberdade de imprensa e o direito à informação. Necessita-se saber em que mundo se vive. É seguro sair de casa? É preciso proteger a família e a propriedade? Alienar-se ou ser alienado pelos outros é sempre pior. O conhecimento da realidade também é uma questão de segurança pública.

No entanto, junto com a difusão dos fatos tem vindo todo um circo. De horrores. A ausência de contextualização faz com que medos e inquietações se espalhem, atingindo aqueles que estão distantes dos focos da crise. Por vezes, há o reforço de preconceitos e a elaboração de pré-julgamentos. Um episódio como o que resultou na morte trágica de Eloá gera intranqüilidade em todas as latitudes. Se a violência é a principal convergência do noticiário, ela se torna o mais importante mesmo que haja registros de outra natureza.

Por mais mórbido que pareça, sabe-se que crimes e brutalidades mexem com a curiosidade humana. Suas implicações com a segurança pública são de interesse popular. Os problemas começam quando a notícia vira espetáculo. O show não pode parar, mas também não deveria gerar mais insegurança do que a sociedade já é obrigada a conviver. E após espremer o mundo até sair sangue, os apresentadores dos telejornais não poderiam dizer boa noite.

* Publicado em Zero Hora e em O Globo Online, 22 de outubro de 2008.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A invenção da década?

Não, não é o iPhone. Nem o Grande Colisor de Hádrons. Esse, aliás, já está em manutenção. Fez bang antes de ser big. A candidata à invenção da década é a resposta para uma das três questões da ficção científica que jamais poderiam se tornar realidade. As outras duas são o teletransporte e a viagem no tempo. A eureca dos dias atuais é um aparato capaz de ler mentes.

O Fast M – abreviatura em inglês de tecnologia móvel para rastreio de atributos futuros – é um sistema de detecção de más intenções que está sendo testado pelos norte-americanos para prevenir atentados. O equipamento interpreta dados biométricos e reações corporais, identificando tendências hostis, em tempo real e de forma não invasiva. Também conhecido como Malintent, o aparelho é um trailer modulado por dentro do qual as pessoas passam para ser examinadas.

A geringonça é um produto típico da paranóia pós-11 de setembro e da era Bush. Se a máquina faz o que almeja é irrelevante frente às possibilidades que se pode imaginar para algo assim. Começando pelos Estados Unidos, parece que o invento teria sido mais útil aos banqueiros quebrados se antes de darem crédito para qualquer um tivessem verificado a pretensão das pessoas em quitar suas dívidas. Se bem que a maioria sempre quer pagar seus débitos, o problema é ter dinheiro suficiente para saldar vinte cartões ao mesmo tempo.

Há aplicações mais universais para o produto. Por exemplo, seria o fim da forma como a política é feita hoje. Se os reais objetivos dos candidatos a cargos públicos pudessem ser conhecidos antes deles serem sufragados, os com inclinação para corrupção não seriam votados. Ou seriam? Qualquer semelhança com a realidade no caso é de propósito.

Talvez não haja aproveitamento mais desejado do que nas relações amorosas. Quanta traição seria evitada se fosse viável antecipar a disposição de cada pessoa em um relacionamento. Já os pais não precisariam perguntar quais as intenções dos rapazes com suas filhas (ainda se faz isso?). Apesar de que eles sempre estiveram cientes da resposta. Contudo, antes do genitor seria a própria menina que gostaria de saber se o namoradinho quer fazer mal a ela. E caso ele não queira, corre o risco de ser mandado ao inferno junto com o tal Fast M. Lá que é o lugar das boas intenções não é mesmo?

* Publicado em O Correio de Cachoeira do Sul, 17 de outubro, no Diário Popular de Pelotas, 18 de outubro, no Diário de Canoas, 20 de outubro, e na Gazeta do Sul, 24 de outubro de 2008.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Renda-se, estamos cercados

Resolvi batizar meu filho na mesma paróquia onde recebi esse sacramento. Terminada a cerimônia, era o momento das fotos. Queria uma com toda família na frente da igreja, igual à que tenho do meu batizado. Como a porta principal estava fechada, saímos por um acesso lateral. Ao chegar à rua, a decepção. A entrada do templo estava cercada. A fotografia teve que ser feita na calçada, tendo as grades como moldura.

Lamentei que a insegurança tivesse abraçado com barras de ferro a minha igreja. Porém, lembrei de algo que foi comentado na palestra preparatória do batismo. Mais de 40 grupos se reúnem na paróquia todos os dias nos mais variados horários. Crianças, jovens, adultos e idosos. Pessoas que necessitam de ajuda ou que querem colaborar. Elas vão lá pela fé que têm, mas conclui que também por se sentirem seguras rodeadas pelas grades.

O aumento no número de shoppings, preferidos por muitos até para o almoço familiar de domingo, tem a mesma causa, o real sentimento de proteção, diferenciando-se das vias públicas onde o temor é permanente. Aliás, fortificações são desde a antiguidade razões para que o ser humano se sinta seguro, conviva socialmente e mantenha relações econômicas. As biografias das cidades sempre se confundiram com a história de suas muralhas. E os nossos doces lares, com suas trancas e cadeados, são o que além de prisões de segurança máxima?

No espaço urbano, como última estância da vida sem grades restam apenas alguns grandes parques, por enquanto, pois em breve a insegurança fará todos capitularem nesse ponto também.

Logo estarei levando meu filho aos parques. Como não desejo que ele pise em agulhas infectadas, preservativos usados ou excrementos, vestígios de atos praticados nesses espaços quando a maioria descansa em casa, também quero gradear as áreas verdes.

Insegurança é uma condição social presente. Para modificar isso é necessário um processo demorado com abrangência cultural e econômica. Mas hoje não há escapatória. Renda-se ao cercamento dos parques de sua cidade porque já é assim que vivemos em nossas casas.

* Publicado em O Globo Online, 09 de outubro, em O Informativo do Vale, 10 de outubro, em A Razão, 11 de outubro, e em O Correio de Cachoeira do Sul, 14 de outubro de 2008, e no Diário de Canoas, 22 de abril de 2009.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O laudo e os "maletas"

O laudo da Polícia Federal concluiu que as maletas da Abin não possuem a capacidade de realizar o grampo do qual foi vítima o presidente do Supremo Tribunal Federal, conforme já havia adiantado a companhia fabricante dos equipamentos. Insatisfeito com o resultado, o deputado Marcelo Itagiba, delegado federal e presidente da CPI das Escutas Clandestinas, resolveu solicitar novos exames para o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações de Campinas, uma fundação privada sem vínculos com órgãos periciais. Itagiba justificou que a Comissão é independente para fazer isso. Ao tomar essa atitude o deputado fez exatamente o contrário: a CPI passou de órgão isento a parte de um litígio. Para compreender esse erro basta verificar como se dão os procedimentos judiciais.

Nos casos de natureza criminal, toda vez que uma prova técnica é requerida, essa responsabilidade recai em uma instituição oficial. No confronto que se estabelece nos processos, quando uma das partes se sente prejudicada pelas conclusões da perícia, ela pode recorrer à contratação de um assistente particular e constituir a sua própria prova técnica.

Contrariado com o laudo, o presidente da CPI optou por profissionais que não estão investidos da fé pública intrínseca aos peritos oficiais. Assim o objetivo do novo trabalho não é outro do que procurar respostas que melhor satisfaçam interesses políticos.

A Comissão poderia continuar independente se recorresse a algum dos outros 27 serviços periciais oficiais disponíveis no Brasil. Se a preocupação do deputado oriundo da Polícia Federal é a de que os peritos dessa instituição têm vínculos com a estrutura policial, a CPI poderia escolher um dos 18 estados em que a perícia oficial é autônoma como, por exemplo, o Instituto-Geral de Perícias gaúcho.

Privatizando a produção da perícia, a Comissão desvaloriza a prova técnica oficial. O mesmo faz o presidente do Supremo quando diz que o laudo apresentado é insuficiente, assim como o ministro da Defesa ao insistir em afirmar que o equipamento faz o que nem quem o fabrica consegue realizar. Se sob o ponto de vista pericial o caso foi esclarecido, o que restou foi uma cansativa disputa de vaidades entre os verdadeiros "maletas" do episódio. Para verificar isso, é só fazer a perícia.

* Publicado em A Razão, 03 de outubro, no Diário Catarinense, 07 de outubro de 2008, e no Diário de Canoas, 07 de março de 2009.