quarta-feira, 16 de julho de 2008

Se fosse um desses negrinhos

Se fosse ao menos um desses negrinhos fujões, desses que não conhecem o seu lugar, que vivem de roubar galinhas para não morrer de fome, ninguém teria reparado nele sendo levado a ferros para a senzala. Porém, quando se ficou sabendo que o “coroné” Ladine havia sido acorrentado e arrastado pelos grilhões para fora da casa-grande por um capitão-do-mato, os doutores, os nobres, a corte toda se quedou horrorizada. Quem que aquele empregadinho público de última categoria estava imaginando que era prendendo uma pessoa como aquela, oriunda das melhores cepas de nossa sociedade, a família d’Satan? Multiplicaram-se discursos repudiando o fato de que um homem de bem, um cidadão que produz riqueza para esse País, um personagem da nossa história, havia sido humilhado e tratado pela lei como se fosse igual aos demais.

Mas nada revoltou mais às altas rodas do que a informação de que o capitão havia recusado um conto de réis em ouro para fechar um olho para uma ou outra travessura do “coroné”. Nunca algum doutor ou nobre havia se negado por uma quantia dessas ou até menor, porque um conto é um conto, a atender a um pedido de tão distinta figura, de tão proeminente fidalgo. Um favor, uma benevolência, um singelo beija-mão. O que era isso perto do valor da amizade entre pares, freqüentadores dos mesmos salões, degustadores dos mesmos vinhos, aproveitadores da mesma bela vida?

E não foi só o ato da negativa ao valor em si que ofendeu a nobiliarquia. Ainda querem usar essa oferta quase impoluta, quase inocente, como arma para vilipendiar ainda mais a imagem de tão ilustre benfeitor, para dilapidar o patrimônio moral de tão notável compatriota. Isso não haveria de ficar assim. Que se acione o meritíssimo, o excelentíssimo ou, até, se preciso, o reverendíssimo, para livrar o “coroné” Ladine dessa condição ultrajante de ser mais um entre aqueles para quem as leis realmente foram feitas. Era preciso resolver tudo antes da aurora. Um d’Satan jamais haveria de ver o sol nascer quadrado. Onde essa gente pensa que está? Com quem eles julgam que estão tratando? Será que não se enxergam? É uma pouca vergonha. Se ao menos fosse um desses negrinhos...

* Publicado no Diário Popular de Pelotas, 16 de julho de 2008, e no Diário de Canoas, 17 de março de 2009.

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