terça-feira, 8 de julho de 2008

A outra metade

Pode virar lei. Só depende de sanção presidencial. Foi aprovado projeto que obriga rádios e televisões a reservarem espaço para no mínimo 50% de notícias positivas. A iniciativa é do Senado. Da Romênia. O país do Leste Europeu, que entre 1965 e 1989 viveu sob a ditadura de Nicolae Ceausescu, hoje é governado por uma maioria liberal liderada pelo Partido Democrata. Considerando isso, é irônica a opção pela censura, característica de regimes de exceção, ainda que disfarçada. Como outrora, quem mais vai definir o que é bom ou ruim senão os poderes de Estado?

Os romenos estão fazendo algo que outras democracias tentaram e não conseguiram. Em 2003, Lula declarou que "notícia é aquilo que não queremos que seja publicado, o resto é publicidade". No ano seguinte, encaminhou ao Congresso projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo para orientar, disciplinar e fiscalizar a atividade. Desistiu por causa da pressão social. No Brasil, se a quantidade de notícias amenas fosse colocada em discussão, era provável que fosse aprovado um percentual superior, vide a opção por extremos como no caso da tolerância zero aos motoristas que consomem bebidas alcoólicas. Aliás, por que não 100% de boas notícias?

Durante os governos militares, o jornal Estado de S. Paulo chegou a publicar receitas de bolo e trechos dos Lusíadas de Camões no espaço de matérias censuradas. Era o jeitinho jocoso e brasileiro de achar notícias positivas. Agora, imagine essa lei romena aplicada aqui em um dia ruim. Guerra do tráfico, mortes no trânsito, terremoto na Ásia. Isso sem falar de operações da Polícia Federal que os políticos envolvidos acharão negativas - até já houve tentativa de amordaçar a divulgação delas. Haja Nega Maluca. Ainda bem que a epopéia portuguesa tem 1.102 estrofes.

Outra estratégia viável é adotar o padrão do telejornalismo. Depois de mostrar as mazelas do mundo como uma realidade disseminada, para poder se desejar boa noite, encerra-se com uma reportagem mais agradável. O exemplo típico é o nascimento de um bebê panda. O problema aqui é a raridade do fato. Então, propõe-se uma série sobre o filhote: a primeira mamada, o primeiro banho, a primeira ida ao banheiro, etc.

O meio a meio romeno talvez deva exigir da imprensa de lá atitudes mais drásticas. Os programas precisam denunciar a restrição à liberdade de expressão durante metade do tempo. Depois, use-se a mudez como brado, a ausência de sons e imagens como protesto. A receita está nos primeiros versos do poema-canção Metade de Oswaldo Montenegro. "Que a força do medo que tenho / não me impeça de ver o que anseio / que a morte de tudo o que acredito / não me tape os ouvidos e a boca / pois metade de mim é o que eu grito / mas a outra metade é silêncio."

* Publicado em A Razão, 08 de julho, em O Nacional, 14 de julho, no Jornal VS, 22 de agosto, no Diário Popular de Pelotas, 24 de agosto, e no Jornal NH, 16 de setembro de 2008.

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