segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Pausa para sonhar


Dia da coleta de lixo seco. Um homem e sua filha se apressam para recolher latas de alumínio antes que o caminhão da prefeitura leve embora o ganha-pão deles. É um trabalho que costuma ter surpresas. Em uma dessas, a menina encontra um controle quebrado de videogame. O artefato com alavancas e botões coloridos recebe a sua atenção. Por um momento, ela senta na beira da calçada e se dá o direito de admirar aquele objeto.

Do ponto de vista eletrônico, o controle é inútil, mas a garota não se importa. Ela mexe nas teclas como se algo estivesse em funcionamento. De forma lúdica, aquela peça plástica torna viáveis as fantasias da filha do catador, transportando-a para lugares sobre os quais só é possível fazer suposições.

Em quais jogos ela estará envolvida agora? O da princesa guerreira que enfrenta dragões? O da heroína intergaláctica que elimina alienígenas? O da policial que persegue facínoras? Isso se os desejos dela se restringirem a fazer parte da lógica dos videogames.

Talvez a jovem esteja longe dessas ficções, viajando entre as próprias ilusões. Enquanto movimenta as alavancas, pequenas varinhas de condão, ela sonha acordada em ser alguma das cinderelas atuais. A mocinha da novela ou a ganhadora da loteria. A apresentadora do telejornal ou a cantora baiana. A gata do Big Brother ou a modelo internacional.

Ainda no campo das conjecturas, quem sabe a menina, ao apertar os botões, queira abrir portais para outros mundos. Em um universo alternativo, ela seria a filha de um técnico em reciclagem que recebe um salário justo para o sustento familiar. Ela estaria estudando de manhã e à tarde em uma escola pública de qualidade, preparando-se para entrar em uma faculdade com todas as perspectivas de futuro pela frente: ser médica, engenheira, jornalista.

De repente, palavras ásperas do pai interrompem os devaneios da garota. Levanta. Vamos trabalhar. Temos pouco tempo até o caminhão chegar. Despertada para a realidade, ela hesita entre guardar o controle e deixá-lo ali, já que não tem valor comercial. Resolve colocá-lo em um canto do carrinho do pai. Quem sabe, mais tarde, ela o acione, tendo outra vez uma pausa para sonhar. Enquanto isso, a jovem volta ao jogo da vida em que cada latinha juntada representa um pouco mais de comida na mesa. E no qual perder é muito mais do que o “game over” na tela.

* Publicado em O Informativo do Vale, 12 de janeiro, na Gazeta do Sul, 13 de janeiro, e no Jornal NH, 20 de fevereiro de 2009.

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